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Com patrocínio estatal: Junho começa com “terror” para jornalistas

Moçambique continua a registar retrocessos no que diz respeito à liberdade de imprensa, com jornalistas e comentadores a serem sistematicamente alvo de sevícias em razão do seu trabalho. A semana finda foi particularmente pródiga neste quesito, com registo de inúmeros casos de violações em Maputo e Zambézia, que incluem agressões, sequestro, confisco ilegal de material de trabalho e ameaças de morte.

Texto: Amad Canda

Vive-se tempos absolutamente tenebrosos no jornalismo moçambicano. A liberdade de imprensa, consagrada no número 1 do artigo 48º da Constituição da República de Moçambique e na Lei de Imprensa, continua a ter dificuldades para vingar na prática, muito por conta de agentes do Estado aparentemente avessos ao escrutínio.

A semana passada representa na perfeição a fase crítica que a imprensa nacional vive e vai, decerto, justificar uma queda acentuada do país no ranking da liberdade de imprensa, em que está, actualmente (dados referentes ao ano 2022), na 116ª posição, de acordo com o Índice Global de Liberdade de Imprensa, elaborado pela organização Repórteres Sem Fronteiras.

Foi verdadeiramente uma semana de terror, com direito a todo o tipo de violações. A jornalista e activista social Sheila Wilson foi uma das grandes vítimas das forças reaccionárias que tentam impor a lei do silêncio no país. Numa das mais inescrupulosas acções a que já se assistiu, Sheila Wilson foi seviciada, na terça-feira, 4 de Junho, por agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM), enquanto fazia uma reportagem em directo para a página do Facebook de Adriano Nuvunga, director do Centro para Democracia e Direitos Humanos (CDD). Os actos culminaram num sequestro, tudo ao vivo.

A jornalista, soube-se no dia seguinte, foi levada para a 4ª Esquadra da PRM, também conhecida como Esquadra dos Diplomatas, onde permaneceu retida sem direito a comunicar-se sequer com a família. Em contacto com jornalistas após a sua libertação, Sheila Wilson revelou que os agentes da PRM, que alegaram estar a cumprir “ordens superiores”, tinham decidido ficar com o seu telemóvel, desconhecendo-se a intenção.

 

Atrocidades para a ONU ver

É particularmente simbólico o facto de as sevícias aqui relatadas terem ocorrido defronte aos escritórios da Organização das Nações Unidas (ONU) na cidade de Maputo. Naquele espaço estavam concentrados mais de 300 ex-agentes do Serviço Nacional de Segurança Pública (SNASP) que procuravam chamar atenção para o facto de não estarem, há já décadas, a receber valores que lhes são devidos pelo Estado moçambicano.

A cobrir essa manifestação estava também uma equipa da STV que, aparentemente, incomodou agentes da Lei e Ordem. Com efeito, agentes civis à paisana agrediram dois jornalistas da STV e arrancaram a câmara que continha imagens de membros da Unidade de Intervenção Rápida supostamente violentando os manifestantes que, frise-se, são idosos.

Para o espanto de todos, tais actos foram testemunhados por dezenas de outros agentes, que permaneceram impávidos. Isso não impediu, porém, que o porta-voz da PRM alegasse que poder-se-ia estar em face de “furto protagonizado por desconhecidos”. Com a mesma desfaçatez, a polícia viria depois a explicar que encontrou o instrumento com três jovens.

“Sem dar muitos detalhes, eles explicaram que mandaram os jovens mostrarem o que traziam e estes, por medo, lançaram o saco ao chão e puseram-se em fuga. Quando abriram, viram que continha uma câmara de filmar, por sinal, da STV”, contou Emildo Sambo, chefe de Redacção do canal.

Confiscar material de trabalho de jornalistas parece estar na moda em Moçambique. É que na mesma semana, concretamente no dia 5 de Junho, a delegada do Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica na Zambézia, Ana Couto, decidiu confiscar material de trabalho de uma equipa do Diário da Zambézia que se fez ao local para a entrevistar.

“De acordo com o relato do Diário da Zambézia, a delegada foi ao extremo de revistar os repórteres para garantir que não estavam a esconder nenhum dispositivo para gravar a entrevista [trata-se de uma entrevista que a própria aceitou conceder]. A suposta justificativa apresentada pela delegada para estas medidas foi a de não querer se tornar manchete no Diário da Zambézia, alegadamente para proteger o seu ganha-pão”, escreveu o MISA Moçambique numa nota de condenação.

 

Agressão a Vasco Dava e ameaças a Ernesto Martinho

Aquela que é já uma das semanas mais tristes da história do jornalismo moçambicano terminou com mais um acto execrável: ameaças de morte contra o jornalista Ernesto Martinho, da TV Sucesso.

“Fui abordado por três indivíduos, dos quais consegui reconhecer um. Disse que estava a mexer em assuntos que não me dizem respeito e que não seria eu a resolver problemas deste país. Não te esqueças de como terminou João Chamusse”, denunciou o jornalista.

Chamusse, lembre-se, era editor do semanário Ponto por Ponto e foi barbaramente assassinado no dia 14 de Dezembro do ano passado.

As ameaças de que Martinho foi alvo, supostamente protagonizadas por um indivíduo ligado ao partido Frelimo, vieram somar-se à agressão sofrida pelo seu colega de estação, Vasco Dava, no passado dia 5. Dava foi agredido pelos seguranças do primeiro-ministro, Adriano Maleiane, de quem o jornalista pretendia obter algumas respostas.

 

Estado cúmplice

No lugar de se retratar perante os actos perpetrados pelos seus agentes, o Estado moçambicano tem dado mostras de apoiar em toda a linha as violações das liberdades de imprensa e de expressão em Moçambique. Como se o silêncio já não fosse suficientemente revelador de cumplicidade, o comandante-geral da Polícia da República de Moçambique (PRM), Bernardino Rafael, veio a público fingir que nada aconteceu.

“Infelizmente, apareceu uma jornalista – que não sei onde se registou – que estava a criar agitação, aquilo que vocês viram na rede. Nós não batemos em ninguém, não agredimos”, disse Bernardino Rafael, numa tentativa gorada de esconder as agressões a Sheila Wilson, que todos viram nas redes sociais.

 

Uma agressão à democracia

Se o Estado compactua, organizações ligadas ao jornalismo trataram de mostrar que não estão dispostas a tolerar violações das liberdades fundamentais do país. Através de uma nota, a Direcção da ST Projectos & Comunicação, proprietária dos jornais Dossier Económico e Dossiers & Factos, condenou os “repugnantes actos de violência” perpetrados pela polícia e expressou solidariedade à SOICO e ao CDD.

O Sindicato Nacional de Jornalistas (SNJ) também repudiou os actos de violência e a recolha ilegal de material de trabalho, expressando igualmente solidariedade às vítimas da actuação policial.

O Conselho Superior da Comunicação Social, por sua vez, destacou que agressões a jornalistas e a retenção ou destruição de seu equipamento de trabalho são ilegais e constituem comportamentos autoritários de pessoas, grupos de pessoas ou agentes do Estado que pugnam pelo desrespeito pela liberdade de imprensa e direito à informação.

Para Paula Monjane, da Sociedade Civil, os episódios da última semana constituem uma demonstração de que o espaço para a crítica está cada vez mais fechado em Moçambique. Já o director executivo do MISA, que tal como Paula Monjane falou à RFI, defende o fim da impunidade.

“É um episódio pesado, violento. O que ocorreu é deveras abusivo. O MISA – Moçambique – e o Centro de Democracia e Direitos Humanos – CDD – exigem a responsabilização dos agentes envolvidos na agressão aos jornalistas nos incidentes violentos da última semana”, afirmou, citado pela RFI.

Enquanto isso, o CDD vê no sequestro da jornalista e activista Sheila Wilson e na recolha da câmara do Grupo SOICO “uma agressão à democracia e aos direitos humanos”.

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