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Quando Deus quis fazer Davi Rei, enviou-lhe Golias e não uma coroa: as epistemologias da nossa identidade (1)

Por: Sérgio dos Céus Nelson – Terapeuta

 

Nunca foi tarefa fácil nos reconstruirmos depois da neblina pesada que afundava nossos anseios, metas, sonhos – e nessas peripécias vemo-nos diluídos em medos profundos que muitas vezes fatigam e fuzilam nossas identidades, como se não mais pudéssemos nos livrar do caos. Os Vikings tinham uma máxima que acho oportuna reflectirmos sobre ela em momentos de turbulências. Eles defendiam que, ao se chegar à ilha, era preciso que se queimassem os barcos e afundá-los. Pensar nesta lógica é, ao mesmo tempo, compreender que quando se está em uma batalha, para reconstruir o fragmentado, o melhor a se fazer é assumir que não existe outra opção senão continuar a luta até que os medos tenham sido enfrentados e quiçá derrotados.

A construção da nossa identidade é um processo contínuo e dinâmico, que envolve enfrentar desafios internos e externos. Os medos, muitas vezes, surgem como obstáculos nesse caminho, influenciando directamente a maneira como nos vemos e nos relacionamos com o mundo. Quando escolhemos evitar ou negar nossos medos, criamos uma barreira invisível que nos impede de explorar partes essenciais de nós mesmos. Esse distanciamento pode resultar em uma identidade fragmentada, onde sentimos que há aspectos de nossa personalidade ou desejos que nunca conseguimos compreender ou aceitar plenamente.

O não enfrentamento dos medos também pode gerar um ciclo de auto-sabotagem, no qual evitamos situações ou decisões que, embora desafiadoras, são fundamentais para o crescimento pessoal. Ao nos esquivarmos de confrontar o que nos assusta, perdemos a oportunidade de superar essas limitações e, com isso, de nos fortalecer. A identidade que se forma sem a confrontação dos medos tende a ser mais restrita, baseada em um lugar de fuga e não de autoconhecimento, o que nos impede de alcançar nosso verdadeiro potencial.

Por outro lado, ao enfrentarmos nossos medos, abrimos portas para a transformação e para a construção de uma identidade mais autêntica e integrada. A superação das dificuldades emocionais que surgem quando nos deparamos com o medo nos permite enxergar nossa verdadeira essência, sem as limitações impostas pela fuga. Esse processo não só nos ajuda a amadurecer, mas também nos aproxima das partes mais profundas de nossa personalidade, permitindo que a identidade se torne mais plena e coerente com quem realmente somos.

A identidade de um indivíduo é moldada por suas experiências, crenças e emoções. No entanto, quando evitamos enfrentar nossos medos, corremos o risco de construir uma identidade frágil, baseada em distorções cognitivas e crenças disfuncionais. A terapia, especialmente a Terapia Cognitiva Comportamental (TCC), surge como um recurso fundamental para a compreensão e reestruturação desses padrões de pensamento que limitam nosso desenvolvimento pessoal.

Recentemente, li algo que dizia – e cito: se não traz paz ou propósito, então não dê o seu tempo, nem sua atenção. É tão interessante que em uma única frase notamos duelos entre o ser e o existir, no meio de uma colectividade que muita das vezes no define e pode impactar nossas identidades. Na verdade, a identidade é um processo dinâmico e contínuo, que se forma a partir da interacção entre factores biológicos, sociais e psicológicos. O medo, por sua vez, é uma emoção fundamental para a sobrevivência, mas quando não é enfrentado adequadamente, pode limitar o crescimento pessoal e gerar uma identidade marcada pela insegurança.

Aaron Beck, criador da TCC, escreveu sobre o funcionamento do pensamento humano através do Modelo de Beck, que evidencia a relação entre crenças centrais, crenças intermediárias e pensamentos automáticos. Segundo esse modelo, experiências traumáticas podem gerar crenças centrais disfuncionais, que por sua vez influenciam nossas percepções e comportamentos. Assim, quando evitamos enfrentar nossos medos, perpetuamos distorções cognitivas como a catastrofização e a desqualificação do positivo, que reforçam ciclos de ansiedade e baixa auto-estima.

Outro conceito essencial dentro da TCC é o Triângulo Cognitivo, que ilustra a interacção entre pensamentos, emoções e comportamentos. Pessoas que sofrem de transtornos como o Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) ou o Transtorno Depressivo Maior frequentemente apresentam padrões rígidos de pensamento negativo, o que impacta directamente sua visão de si mesmas e do mundo. A exposição gradual ao medo, acompanhada de estratégias de coping como auto-instruções positivas e técnicas de relaxamento, pode ser uma ferramenta poderosa para modificar esse ciclo. Aliás, o processo de formulação das identidades passa também pela percepção de que toda escolha depende de uma renúncia, afinal, não se entra em duas portas ao mesmo tempo: é preciso que se aprenda a definir o ser que pretendemos ser.

 

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