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EDITORIAL D&F: A Chama da Unidade e o desafio da moçambicanidade

No dia 7 de Abril, arrancou em Cabo Delgado a tradicional marcha da Chama da Unidade, iniciativa simbólica que culminará a 25 de Junho, em Maputo, data em que Moçambique celebra meio século de independência nacional. Tratase de um gesto profundamente carregado de significado histórico, que remete para os ideais fundadores da Nação moçambicana — a liberdade, a unidade e a soberania.

No entanto, o lançamento da tocha este ano não tem sido recebido com unânime entusiasmo. Algumas franjas da sociedade, especialmente nas redes sociais e em círculos académicos e políticos, têm manifestado críticas à iniciativa, considerando-a um acto fútil e dispendioso. As vozes contestatárias questionam a pertinência de se investir recursos públicos numa cerimónia de cariz simbólico num contexto em que o país enfrenta dificuldades económicas acentuadas.

Não se pode ignorar a legitimidade das preocupações com a gestão do erário público. Numa altura em que se acumulam dívidas, cresce o custo de vida e se tornam evidentes as limitações no investimento em sectores básicos como a saúde, a educação e as infraestruturas, é compreensível que os cidadãos exijam responsabilidade, parcimónia e clareza nas prioridades governamentais.

Todavia, é também fundamental evitar uma leitura reducionista da realidade. Os povos não vivem apenas de pão; vivem igualmente de símbolos, de memória colectiva e de gestos que conferem sentido à sua existência comum. A história de um país não se resume à contabilidade orçamental. Ela constrói-se também através de actos simbólicos que alimentam a alma da Nação e consolidam os seus valores fundamentais.

A Chama da Unidade, longe de ser um simples ritual, carrega consigo a evocação de um ideal que, embora por vezes fragilizado, continua a ser o cimento possível de uma convivência pacífica entre as várias comunidades que formam Moçambique. Num tempo em que os discursos de exclusão e as tensões políticas e regionais se agravam, torna-se urgente revitalizar os instrumentos que promovem a coesão nacional.

É precisamente neste contexto de polarização crescente que a marcha da tocha pode cumprir um papel insubstituível: o de lembrar que a independência de 1975 foi conquistada com sacrifício colectivo e que a Nação moçambicana só terá futuro se os seus cidadãos se reconhecerem mutuamente como parte de um mesmo destino. Trata-se de uma pedagogia simbólica que não deve ser desvalorizada.

Contudo, o valor simbólico não pode servir de pretexto para desperdício. A defesa da Chama da Unidade não deve, em momento algum, ser confundida com a apologia do despesismo. A realização do evento deve obedecer a critérios de rigor orçamental, transparência e sobriedade. Qualquer abuso ou desvio de recursos públicos em nome da celebração patriótica será, e bem, condenado pelos cidadãos.

É, pois, possível — e necessário — conciliar os dois imperativos: celebrar a história e proteger o bem comum. A sociedade civil deve continuar vigilante, exigindo prestações de contas, e os órgãos de controlo devem assumir as suas responsabilidades de forma proactiva. O apoio à marcha simbólica não pode ser cego; deve ser informado e exigente.

Cabe também ao Governo demonstrar que está atento às críticas e disposto a adequar os moldes da celebração à realidade do país. Uma Nação madura celebra os seus marcos históricos com elevação, mas sem arrogância. A glória da memória não pode eclipsar a urgência do presente. E a grandeza dos ideais deve reflectir-se na ética da acção concreta.

Da mesma forma, importa estimular um debate mais profundo sobre o significado da moçambicanidade. Que valores nos unem? Que visão comum temos para o futuro? A Chama da Unidade pode e deve ser o ponto de partida para uma reflexão nacional mais ampla, que envolva jovens, líderes comunitários, intelectuais, empresários e governantes.

Num mundo em mudança acelerada, onde as identidades se fragmentam e as desigualdades se acentuam, urge consolidar os vínculos que nos ligam como povo. A unidade não é um dado adquirido; é uma construção diária, que exige diálogo, partilha, respeito mútuo e um permanente reencontro com os ideais que inspiraram a luta de libertação nacional.

Celebrar os 50 anos de independência com a tocha acesa é, em última instância, uma forma de reafirmar que, apesar das dificuldades, Moçambique não renuncia ao seu projecto colectivo. Que o fogo simbólico que atravessará o país de norte a sul nos ilumine o caminho — e que nos lembre que a liberdade, sem unidade, é uma promessa incompleta.

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