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MUSSA REFLECTE SOBRE OS 50 ANOS: “Samora tinha tudo para dar certo”_Part.01

– “É preciso diminuir os poderes da capital”

– “Não se mata a tribo para construir a Nação”

Fora da política partidária, mas com um passado activo como deputado pela Renamo e co-fundador do MDM, Ismael Mussá concedeu uma grande entrevista ao Dossiers & Factos, na qual traça uma leitura crítica da trajectória política e institucional de Moçambique. 50 anos após a independência, o académico considera que o País tem motivos para se orgulhar, mas alerta que é urgente uma reflexão profunda sobre os erros cometidos ao longo do percurso — entre eles, o centralismo excessivo, a desvalorização da diversidade cultural e a hegemonia da elite da capital. “Não se controla riqueza a 2000 km de distância”, alerta, ao defender uma descentralização efectiva dos poderes do Estado como condição para a inclusão e o desenvolvimento equilibrado do território. Com a liberdade de quem já não tem compromissos partidários, Mussa partilha também o seu olhar sobre os quatro primeiros Presidentes da República. Sobre Samora Machel, diz que “tinha tudo para dar certo”. Vê em Joaquim Chissano um diplomata hábil, que recuperou a paz e deixou o País sem dívida. Elogia Armando Guebuza pela sua luta na promoção da autoestima e considera que Filipe Nyusi foi “um bombeiro”. Nesta primeira parte da entrevista, Mussa propõe uma revisão crítica da história moçambicana e convida ao debate sobre o futuro. A segunda parte será publicada na próxima edição.

Texto: Serôdio Towo

Dossiers & Factos: Professor, estamos a cerca de dois meses de um marco importante – os 50 anos de independência. Acha que temos razões para comemorar com orgulho?

Ismael Mussa (IM): Eu acho que nunca se pergunta a um escravo se quer ser livre. “A independência nacional não deve ser motivo de discórdia para ninguém”. Podemos ter aspectos menos bons, que, se calhar, podiam ser evitados, temos verdades que, se calhar, ainda não vieram a público; temos aspectos da reconciliação que já devíamos ter abraçado, mas eu acho que ninguém, em sã consciência, pode dizer que não tem orgulho da independência. Agora, que houve aspectos menos bons, houve. Podemos ver o que é que foi menos bem feito, para daqui para frente fazermos melhor. Não podemos voltar a errar, porque já temos uma experiência de 50 anos. Um dos nossos problemas de partida tem muito a ver com a nossa cultura política, de autoritarismo, desconfiança e desqualificação do outro, e isto herdamos um pouco do próprio governo colonial. E o processo de socialização molda algumas atitudes no ser humano. Se calhar, muitos dos nossos líderes no pós-independência foram, digamos, socializados dentro desta sociedade que eu estava a descrever, que depois reproduziram no pós-1975. Mas, hoje, nós temos que ter a capacidade de ultrapassar isto, precisamente a questão da desconfiança; nós aqui falamos muito da desconfiança política, mas ela vai muito mais fundo, não é? Repare que, em 1975, se a gente olhar para o primeiro Governo, vê o País lá reflectido. Mas qual era o problema? Era a desconfiança, por quê? Todos aqueles que não estiveram com o movimento, não eram vistos com confiança, logo, ao reconstituir o Governo, ele representava aquilo que eram as pessoas que se confiavam entre si. Por exemplo, a província de Nampula tem a maior etnia deste País – os Macuas – mas a primeira vez que Nampula teve um ministro foi já nos anos 80, percebe? Mas não vamos cavar o passado.

“A capital nunca devia estar em Maputo” “Temos que reduzir o poder que está na capital”

D&F: Como não cavar o passado num contexto em que estamos a falar de uma história de 50 anos?

IM: Estou a cavar, mas não no sentido de pegarmos isto e vermos como um problema e ficarmos só no problema mas vermos isto como história. Viemos de longe, por isso, alguns erros de partida foram ultrapassados. Hoje, olhando para o Governo, nós vemos todos moçambicanos lá, o que é um processo saudável, mas levou tempo. Nem todos se confiavam, porque nem todos estiveram na mesma altura na luta armada, tudo isso criava desconfianças, e depois tivemos a guerra civil, que veio nos criar uma outra desconfiança, que era desconfiança Frelimo-Renamo. Isto moldou também a nossa sociedade. Depois temos, por exemplo, uma sociedade muito urbanizada. A questão, por exemplo, da elite da capital, que eu acho também que cria uma outra desconfiança, porque ela tornou-se uma elite muito hegemónica, por motivos vários. A capital, para mim, foi um acidente de percurso, não devia estar em Maputo, foi um mero acidente.

“Não se controla riqueza a 2000km de distância”

D&F: Onde é que devia estar?

IM: É só ir ao Google e ver porque é que temos a capital aqui, é muito recente. Se for ao Google, escreva 24 de Julho de 1875. Foi o Marechal Mac Mahon que decidiu a favor dos portugueses e não dos ingleses, e então, lhes entregou. Podia ter dado aos ingleses. O Marechal era o presidente francês. Havia um litígio por esta região, entre os portugueses e ingleses, e foram ao tribunal. Ambos os países disseram que a decisão que saísse do tribunal arbitral era irrecorrível e seria respeitada. E os franceses, como queriam atacar os ingleses, que já controlavam esta região toda, deram isto aos portugueses. É por isso que temos a Avenida 24 de Julho, que muitos de nós, erradamente, pensamos que é somente das nacionalizações. Nacionalizações foram um rebaptizar da avenida, mas ela sempre existiu com esse nome. Quando se dá a independência, Moçambique fazia exactamente 100 anos de colonização aqui nesta região, não 500. Isto foi entregue aos portugueses em 24 de Julho de 1875, e a independência foi no dia 25 de Junho de 1975, 100 anos depois. Por isso, fico um pouco admirado quando vejo aqueles que estudam a história falarem em 500 anos de colonização. 500 Anos de colonização foram na costa, nas grandes fortalezas, e foi no interior, na Vila de Sena, quando criaram a Capitania de Sena. Mas há partes de Moçambique em que foram 100 anos. É isso que nós temos que explicar à nova geração, para não criarmos também uma ideia errada da nossa história. É a história, não podemos escondê-la, temos que falar a verdade sobre ela. Portanto, a capital aqui foi um mero acidente. Os portugueses, quando receberam isto, continuaram o acordo que tinham assinado com os ingleses, mas os holandeses continuaram a atacar isto. E aí os portugueses foram obrigados a transferir os militares da Ilha de Moçambique para proteger o território, é por isso que isto virou capital, não há outro motivo. Foi um mero acidente. Mas hoje tu tens toda a riqueza lá em cima [no Norte]. Em nenhuma parte do mundo tu controlas uma riqueza a 2000 km de distância. Tu não vais conseguir segurar isto a longo prazo. Então, nós temos que ter a capacidade rápida de nos anteciparmos aos fenómenos. Por isso, é importante termos uma visão do País. O que vai tornar o nosso País mais coeso e mais unido na diversidade é a descentralização. E uma das formas de podermos fazer isto é, rapidamente, reduzir o poder que está na capital. Não digo tirar a capital daqui, porque acho que teria um custo muito alto fazermos uma nova capital hoje. Mas acho que poderíamos rapidamente libertarnos de alguns poderes a nível da capital.

“Não se mata a tribo para construir a nação”

D&F: Como quais?

IM: Essa ideia do Presidente Chapo, de descentralizar o Parlamento, por exemplo, acho que é excelentíssima. Nós devíamos assumir isto com convicção. Levar o parlamento para Mocuba, levarmos os tribunais para [outras] províncias – Supremo em Nampula, Constitucional em Gaza, Administrativo em Manica, Cabo Delgado ou Niassa, por exemplo…Começarmos rapidamente a retirar o poder da capital, para que seja distribuído. E, mais do que nunca, numa visão de longo prazo, nós temos que reduzir esse investimento total na capital, temos que fazer com que as receitas fiquem nos locais. É claro que deve vir ao Governo Central um percentual para fazer aquilo que é política do Estado a nível nacional. Mas temos que descentralizar de facto, ficarmos só com as áreas de soberania a nível da capital. Se descentralizarmos o poder para as províncias, vamos tornar o País mais unido, mais coeso. Muita gente tem medo disso, mas é exactamente aí que está o segredo da nossa unidade. No pós-independência, cometemos um erro. Não quero falar muito de erros, mas foi uma coisa menos bem-feita, que foi conceber a unidade nacional esquecendo a diversidade. É por isso que havia aquela frase célebre do Presidente Samora: “Matar a tribo para construir uma nação.” Nunca se mata a tribo para construir uma nação. É um erro gravíssimo. Se, logo à partida, tivéssemos valorizado a diversidade, dentro de um espírito de unidade, se calhar teríamos um País melhor. Mas vamos a tempo. Estamos agora todos a falar da descentralização de poder. Isto é importante. Há um acordo político que espelha essas áreas todas que queremos formular. Então, é agora que nós devemos valorizar as diferenças, mas sempre num espírito de que somos um único País. É possível fazer-se isso. A Suíça, de onde vim recentemente, é o melhor exemplo. Tu tens, na Suíça, Alemanha, Itália, França, mas são todos suíços.

D&F: Tivemos ao longo desses 50 anos cinco Presidentes, sendo que o último só agora começou. Pode fazer uma reflexão em torno do trabalho dos primeiros quatro, já que é prematuro falar de Daniel Chapo? 

IM: De maneira geral, nós tivemos os primeiros três Presidentes muito ligados à capital: Samora Machel, Joaquim Chissano e Armando Guebuza. E, se repararmos, muita da nossa elite é da capital. Eu falo muito da elite da capital e, se calhar, devo explicar o que é isso. Elite da capital não tem nada a ver com uma etnia, com um grupo; somos todos que moramos aqui. Eu próprio, que sou natural da Beira e cresci em Nampula, faço parte desta elite. Qualquer indivíduo, mesmo que venha de Niassa ou Cabo Delgado. E nos tornamos uma elite que, também influenciada pela cultura política, desqualifica muito o outro. Achamos que nós é que sabemos, que somos os mais preparados para governar. E é por isso que, se nós repararmos, as grandes contestações não vieram na era dos primeiros três Presidentes. Lembra-se quando eu fui para a política, quantas pessoas daqui aceitavam ir para a política para contestar o regime? Quando é que as pessoas começaram a ir para a política, para a sociedade civil para questionar o poder político? Foi exactamente quando o poder saiu daqui, da influência da capital. Na política, estávamos eu e os doutores Namburete, Colaço, Manuel de Araújo…éramos muito poucos. Onde é que estavam os outros? Não havia problemas nessa altura? Não havia pessoas nessa altura? Não havia universidades? Não havia um pensar diferente? Muitas vezes, quando me apego muito à partida, as pessoas não me percebem. Mas a grande contestação começa com a entrada de Nyusi. E é bom, a sociedade tornou-se mais crítica, começou a questionar mais. Mas, por que tanta contestação? Por que o Presidente Nyusi era alguém que vinha para aqui, mas que não tinha vivido muito tempo aqui. É verdade que foi ministro, mas foi muito pouco tempo, as pessoas não o conheciam, e nós sempre desconfiamos de quem não conhecemos. É por isso que tínhamos uma grande rejeição. O Presidente Chapo também, se nós repararmos, muito da hostilização que aconteceu neste último processo [eleições 2024] tem muito a ver com isso também. Porque é alguém que foi dirigente, aqui só esteve para estudar, mas depois dirigiu fora de Maputo. Esteve em Nampula, Cabo Delgado e Inhambane, mas quase nunca trabalhou em Maputo. Então, era algo estranho. Tudo que é estranho, leva a gente a se armar, e isto não é bom na consolidação da unidade, na concepção de um Estado. Por isso, é complicado avaliar os Presidentes. Temos de avaliar tendo em conta os contextos e as realidades.

“Presidente Samora tinha tudo para dar certo”

D&F: Mas vamos a este desafio, começando por Samora…

IM: Samora foi aquele que nos constituiu o Estado Moçambicano e não podemos desvalorizá-lo. Fez coisas boas, mas também coisas menos boas: os campos de reeducação, operação produção, “matar a tribo para construir uma nação” – não consigo perceber quem aconselhou o Presidente uma aberração destas. Não se mata uma tribo para construir uma nação. Valoriza-se a tribo para que haja uma unidade na diversidade. Se você é chope, tem as suas tradições, tem a sua língua, você sente-se orgulhoso de valorizar a sua tradição, a sua língua, o seu comer, mas não deixa de ser moçambicano. Hoje é fácil analisarmos isto tendo em conta toda uma história, mas não devemos ficar presos a isto. Isto deve nos servir de ilações para não repetirmos os erros. Agora, há coisas muito boas que podemos destacar: o acesso à educação, à saúde primária, tudo isto foram grandes conquistas da independência. Samora foi um dos Presidentes que tinha tudo para dar certo, porque encontrou um País com grandes infra-estruturas. O País tinha quase tudo, boa indústria, boa rede comercial, quase tudo implantado. Por razões diversas, não conseguiu mantê-las. Aí podemos dizer “sim, mas ao mesmo tempo havia exclusão dos moçambicanos na educação e isto dificultou”, mas algumas coisas podiam ter sido feitas melhor, se nós tivéssemos entendido o País não como todos iguais, mas como todos diferentes dentro do mesmo País. Na zona centro e norte já tinha muita gente habilitada no ensino técnico-profissional; se fossem devidamente aproveitados dentro de uma economia de mercado, se calhar, poderíamos ter hoje melhor indústria e comércio.

“Chissano herdou o País mais difícil”

D&F: Depois veio o Presidente Chissamo… 

IM: Chissano foi o Presidente que herdou o País mais difícil, um País destruído. Não foi por culpa de Samora, foi pela conjuntura, especialmente a guerra civil. Era um País destruído, desunido, e com grandes assimetrias. Teve que iniciar, de forma subtil, um processo negocial com a Renamo, uma coisa que não era concebível na cabeça de muitos dos seus próprios companheiros de trincheira. Lembra-se do que o Presidente Samora já dizia: “Com bandidos não sento à mesa”. Presidente Chissano teve que fazer isso, foi uma grande ousadia. Foi o Presidente mais ousado no seu momento. Iniciou negociações com a Renamo, iniciou a discussão para a introdução dos chapas-100. Se repararmos, nós tínhamos problemas sérios, especialmente nas grandes cidades e, em particular, na cidade de Maputo. Lembro-me que nós fomos os primeiros a usar o chamado “My Love”. Nós vínhamos num camião caixa aberta às 6 da manhã para Maputo estudar. Então, a realidade era muito complexa. Chissano teve que ter a coragem, contra muitos dos seus colegas, para avançar com os chapas-100. Lembra-se daqueles Peugeots que existiam?  

D&F: Amarelos 

IM: Sim, amarelos! Foi uma grande ousadia. Foi a segunda questão depois de ter iniciado o processo negocial com a Renamo. A terceira foi a questão da alienação das casas da APIE. Muitos dos seus colegas de trincheira não queriam. Recorda-se do debate que houve na Assembleia Popular? Muita gente foi contra, mas ele foi corajoso e avançou. Hoje, muitos de nós têm casa graças a isso. Ele deu dignidade aos moçambicanos. O Estado não tinha condições de manter aquelas casas, e muitos de nós não teríamos a possibilidade de ter um bem, e Chissano garantiu-nos isso. Tivemos a quarta questão que, infelizmente, ele não conseguiu pôr em prática. Ele já queria começar com o processo da retirada da influência desta elite da capital, foi quando ele anuncia o Hélder Muteia como seu candidato. Era uma forma de romper com o status quo, assim como a ideia da reforma da terra. Reformarmos a terra. É verdade que as terras acabaram ficando com uma elite, mas chegou a altura de nós reflectirmos um pouco em relação à terra. Porque, mesmo aquele camponês, aquela família no campo, se ela puder ter um título em relação àquele espaço, pode ir ao banco buscar mais recursos, pode valorizar a sua terra. Não temos fórmulas acabadas, mas não devíamos parar com o debate sobre isso. Como imponderar o dono da terra? Quem tem o seu espaço de terra? Porque, no fundo, a terra está a ser vendida. E por que é que não é o Estado também a fazer isso e ter uma receita? Por que é que essa receita vai para terceiros e não vai para o Estado? A quinta questão foi acabar com a dívida. Quando terminou o seu mandato, nós não tínhamos dívida. Negociou, é claro. Lembra-se das idas da Luísa Diogo ao Clube de Paris? Podemos dizer que “tudo bem, a comunidade internacional estava mais aberta a nos ajudar”, mas era o fim da guerra. Qual é o Presidente que herda um País como o Presidente Samora? É o Presidente Guebuza.

USD 2 mil milhões não é dinheiro para um País

D&F: Por que não tinha dívida?

IM: Um País sem dívida, novo e com muitas das infraestruturas já reconstruídas pelo Presidente Chissano e com paz, com a Agenda 2025, que era uma visão de reconciliação de todas as partes, portanto, com tudo para dar certo. E, felizmente, foi com base nisso que ele conseguiu muitas conquistas. Por exemplo, temos a ponte sobre rio Zambeze, a Circular de Maputo, os aeroportos. Guebuza foi aquele que fez grandes infra-estruturas, mas porque herdou um País que podia buscar empréstimos. Estava sem dívida. E eu acredito que, se não tivéssemos tido o problema das dívidas ocultas, se calhar este processo podia continuar de forma muito mais saudável. Talvez, o único calcanhar de Aquiles foi exactamente a forma como se contraíram as dívidas ocultas. O espírito não estava errado — nós termos uma protecção costeira, uma empresa que prestasse serviço às multinacionais, como forma do Estado ter receita. Agora, a forma como foi feita, associado um pouco aos cunhos de corrupção, acabou deturpando a essência. Mas, mesmo assim, se nós não tivéssemos o conflito em Cabo Delgado, se tivéssemos iniciado a exploração de gás nos moldes que pretendíamos, talvez nem descobriríamos o problema das dívidas ocultas, já teríamos pago e estaríamos numa boa. Talvez a única desvantagem que tivemos foi as dívidas terem sido despoletadas e a forma como todo o sistema financeiro mundial nos encurralou. USD 2 mil milhões não é dinheiro para tanta celeuma. Quer dizer, é dinheiro, sim, mas, para uma Nação…Os EUA estão totalmente endividados à China, mas não é por isso que deixa de ser um País digno e merecedor de crédito internacional. A China continua a comprar a dívida americana. Mas por quê? Porque é um País que tem mais-valias que todo mundo vai lá comprar, e nós podemos não ter isso em termos expressivos, mas temos um subsolo extremamente rico. O nosso subsolo é extremamente rico. Mas, prontos, no contexto das relações internacionais, as relações são desiguais e nós fomos pegos numa situação que nos colocou entre a espada e a parede.

D&F: Pode-se dizer que fomos frágeis na gestão deste assunto?

IM: Não necessariamente. Não tínhamos muitas hipóteses na gestão disso. Pela forma como nos encurralaram, não tínhamos muitas saídas. Agora, vale a pena estarmos a procurar culpados? De novo, eu não estou muito à procura de erros, estou à procura daquilo que fizemos menos mal, ou o que nos foi imposto, e o que é que podemos fazer para evitar que se repita. No mandato do Presidente Nyusi, tivemos dificuldades na obtenção de financiamentos. Mas há uma coisa que também temos que dizer: aprendemos a tentar encontrar formas diferentes e a não ficar dependentes só da ajuda externa. O País funcionou. Alguém ficou sem salários? Não. Um País como a Guiné-Bissau, por exemplo, podia ficar seis meses sem salário, mas nós nunca tivemos isso. Com atraso em alguns momentos, especialmente na recta final, com a questão da TSU. Mas cumpriu-se com o serviço da dívida, a um custo muito alto, porque não havia muitas opções. Ou ia-se aos bancos comerciais buscar um crédito com juros muito altos, ou paralisávamos tudo.

D&F: Portanto, já transitamos para Nyusi…

IM: Antes, volto ao Presidente Guebuza, que levantou um movimento que eu acho interessante e que não devíamos abandonar. É a questão de elevarmos a nossa auto-estima. Pode parecer uma frase muito pequena, mas tem um peso muito grande: estares satisfeito contigo próprio, valorizares-te a ti próprio. Porque este é outro problema que nós temos. Vou-lhe dar um exemplo. Fui estudar no Brasil, nos anos 90, e quando voltei, uma das coisas que eu estranhei é que nós não tínhamos um restaurante onde pudesses comer comida local. No Brasil, habituei-me a ir para São Paulo comer comida italiana e comida local. Mas nós tínhamos um complexo. E, depois havia sete milhões. É verdade que aqui fui crítico, pois criou uns prejuízos. Eu achava que aquilo devia ser gerido por uma instituição financeira, que devia ser um banco de desenvolvimento. Mas o espírito era bom. Então, são essas coisas que não deviam ser abandonadas, devem ser melhoradas. Para além disso, surgiram muitos fundos, como o de estradas. Na minha opinião, devíamos era ter um banco de desenvolvimento, e todas essas coisas deviam ser nesse banco de desenvolvimento, poderia criar regras e criar uma maior visão integrada. Mas o facto de existir separado serve também como experiência para depois melhorarmos.

“Nyusi foi um bombeiro”

D&F: Agora podemos passar em definitivo para a era Nyusi?

IM: Nyusi encontrou um País à semelhança daquilo que encontrou o Presidente Chissano – com problemas sérios de estrangulamento financeiro, embora tivessem já parte da guerra localizada, mais na zona centro. Nyusi encontra exactamente uma situação de Chissano em miniatura. Então, tinha que dedicar toda sua energia para resolver aquele problema da zona central, sob risco do conflito se alastrar. E isto numa altura em que ele não tinha recursos. Tinha as torneiras fechadas, tinha que resolver o problema do funcionamento do Estado. Então, foi, digamos, um bombeiro, que teve que ir apagar os fogos que encontrou. Os fogos, no caso, são a guerra e o problema com o FMI. Ele teve que encontrar vários mecanismos para resolver o problema de Satungira. Eu lembro que, nessa altura, dei uma entrevista em que dizia “Nyusi deve ir à Satungira”. E muitas pessoas não me entenderam. Alguns amigos ligaram: “Ismael, tu estás a dizer para um Presidente ir à Satungira?” Sim, senhor, ele devia ir a Satungira. Felizmente, seis meses depois ele foi e a solução veio. Foi uma ousadia. Ele rompeu com o status quo e trouxe-nos a paz, embora não fosse definitiva. Fez também algumas outras ousadas. Nunca na história da Frelimo, desde 75, houve indicação de um membro da oposição para cargos de chefia. A nomeação de Raul Domingos foi a primeira grande ousadia. Acredito que teve muitas críticas dentro do partido. Eu, ao ver as imagens do Presidente Chapo a ser recebido pelo Raul Domingos, em Roma, achei extremamente interessante. Não vi qual seria a diferença se fosse uma outra figura. Raul Domingos respeita o Estado. Temos o exemplo do Eduardo Namburete, que está na Argélia a fazer um trabalho belíssimo. Vamos ter daqui a pouco o investimento na construção de um grande complexo desportivo em Moçambique, a nova praça dos heróis, o aumento do número de bolsas, uma série de coisas que Namburete está a trazer. E a pergunta que fica é: por que é que perdemos tanto tempo em fazer isso? Por que é que demoramos em trazer outros moçambicanos para juntos pensarmos Moçambique? Perdemos tempo. Teve aspectos que, infelizmente, tinham boa perspectiva mas não foram muito bem implementados, como a TSU, mas o espírito é válido. Em qualquer sociedade do mundo existe uma pirâmide salarial. Portanto, o princípio é mais ou menos aquilo que eu digo em relação às dívidas ocultas. Outro aspecto: Nyusi foi o primeiro Presidente que sai deste eixo da elite da capital, com todas as dificuldades que isso possa significar. Eu não gostaria de estar na pele dele, porque sei que seria difícil. Vivo na capital e sei o que é que a capital dialoga. Nós temos problemas de aceitar “o outro”.

D&F: Chegados aos 50 anos, parece que todos os moçambicanos têm esperança nos mega-projectos. É uma esperança realista?

IM: Infelizmente, todos nós acabamos falando de recursos minerais e gás, e perdemos o foco. O gás não vai empregar toda a gente. O gás pode dar recursos que podem ser impulsionadores, mas não vai conseguir, a curto prazo, empregar toda a gente. Pode conseguir, a médio prazo, através do investimento que vamos poder fazer nas várias áreas, alavancar a economia, mas há uma área em que nós devíamos concentrar quase toda a nossa energia, que é a agricultura, que emprega 70% dos moçambicanos. Essa devia ser a nossa aposta, associada à questão do agroprocessamento. Juntos, iríamos ajudar a aliviar o problema imediato. Porque, se nós conseguirmos fazer com que as pessoas tenham a sua base alimentar a nível local, tenham a sua sustentabilidade através da agricultura, já alivia muita pressão do Estado. Outra questão muito importante é que nós seguimos sempre políticas de desenvolvimento inspiradas no Ocidente. Se calhar, temos que sair um pouco da caixa. Temos que aceitar que existem outras formas de desenvolvimento, que não sejam as lógicas ocidentais. Há dias, vi um vídeo sobre a China, sobre várias cidades e percebi que afinal é possível pensar fora da caixa. Mas, é claro, para tu pensares fora da caixa, naquela vertente, tens que fazer reformas legislativas. Por quê? Porque a nossa Constituição reconhece a livre circulação de pessoas. Tudo aquilo que são direitos fundamentais, tu não podes limitar a seu bel-prazer. China é um contexto diferente, mas permitenos pensar que, se calhar, temos que encontrar outras formas. Porque com as pessoas a fazerem mobilidade de forma excessiva para a capital, é impossível, para qualquer que seja o presidente da câmara desta cidade, conseguir governar. Neste modelo que nós temos, é difícil. Porque tu nunca planificas qual é o número de escolas que tu precisas, qual o número de hospitais que tu precisas. Não podes impedir as pessoas de virem a Maputo, mas podes encontrar formas de reter as pessoas nas províncias. Podes encontrar formas para que as pessoas possam sair, por exemplo, da sua província, ir para a outra, mas para ir para uma empregabilidade que lhes dê mais dignidade. Por exemplo, aquilo que o actual Presidente inaugurou agora em Inhambane é muito válido. Aquele complexo pode ter um efeito multiplicador nas pequenas indústrias que vai atrair. Essas pequenas indústrias vão ser atractivas para que as pessoas migrem para ali, mas migrem para serem empregadas. Mas para elas terem empregos, têm que ter habilidades. E é por isso que eu defendia no início que temos que ter um instituto industrial, pelo menos por cada capital, e uma escola técnica, pelo menos por cada distrito, e sempre em associação com o mercado, porque este é que vai definir quantos electricistas, mecânicos ou pedreiros precisamos. Havendo aqui pessoas com estas habilidades, elas podem migrar para lá e reduz-se o fluxo para Maputo. Se tu conseguires ter aquele tipo de complexos em Sofala, Tete, Zambézia, vais reduzir muito o fluxo para Maputo. É que esta pressão sobre Maputo não é saudável. Sabes qual foi a razão do Rio de Janeiro ter deixado de ser capital? Primeiro, a elite do Rio de Janeiro achava que era a única que podia governar o Brasil e hostilizava as outras elites. Repara que o Rio de Janeiro, quando deixou de ser capital, quando a capital passou para Brasília, que foi uma coisa artificial — é por isso que em Brasília dificilmente apanhas alguém que tenha quarta ou quinta geração de Brasília, porque foram pessoas trazidas de todo o Brasil para ali -, surge um fenómeno interessante, nunca mais apareceu um presidente do Rio de Janeiro. Acabou a elite da capital. 

D&F: É o que pode acontecer com Maputo?

IM: Certo, mas há um segundo aspecto que é ligado ao nosso País. É que o problema do Rio de Janeiro é da segurança, da estabilidade social. O Rio tem muitas favelas, muita desigualdade social, então, a capital, naquele contexto, era complexa. Veja o que aconteceu aqui com as manifestações. Tu paralisaste um País a partir da capital, onde há 2% da população no País. Tu pegas no avião, vês as outras partes, estava tudo a funcionar no momento. Onde é que havia problema? Era aqui. Mas, por ser a capital, espelha a crise do País. Quando falava com pessoas de fora do País, todos diziam-se preocupados porque pensavam que Moçambique estava todo paralisado, porque as imagens que saíam da capital. Tu queres ir ao aeroporto, tens um bairro com desigualdades sociais no acesso; se quiseres ir à Matola, tens um bairro aqui e ali com desigualdades. Isto, no Brasil, levou a que se tirasse a capital do Rio. Havia muitas convulsões sociais que não permitiam que o Rio, que era a capital, pudesse pensar, o País estava sempre a apagar fogo. E uma capital não pode estar a apagar fogos. Então, são desafios que nós temos.  

D&F: Mesmo assim, continua a defender que Maputo continue sendo a capital?

IM: Eu continuo a defender que não devemos tirar a capital, mas devemos encontrar formas de reduzir o fluxo migratório para a capital. Tem que ser de forma inteligente, sem ser com “operação produção”, mas com o tipo de medidas que mencionei antes, nomeadamente criação de polos de investimento que atraiam pessoas que vão para lá com empregabilidade, com melhor dignidade, com melhor auto-estima, mas, ao mesmo tempo, trabalharmos estes bairros. Nós sempre nos preocupamos com a pobreza rural e poucas vezes nos concentramos com a pobreza urbana. Então, neste momento, um dos desafios do Presidente Chapo é concentrar-se na pobreza urbana também, com uma grande parceria com os municípios, com uma maior descentralização de municípios. Temos que trabalhar esta pobreza [a urbana], sem ter que tirar as pessoas dali, mas de forma saudável; podes encontrar formas de requalificação do bairro, criar formas de aquelas pessoas poderem se beneficiar de formação técnico-profissional e poderem concorrer a vagas nestas plataformas que estamos a criar agora, como aquela que foi criada em Inhambane.

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