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UNIÕES PREMATURAS: Futuro de raparigas trocado pelo presente de pais em Inhambane

No mês em que se celebra o Dia Internacional da Criança (1 de Junho) e o Dia da Criança Africana (16 de Junho), o jornal Dossiers & Factos publica um conjunto de reportagens que visam estimular a reflexão sobre os direitos da criança em Moçambique. Esta semana, damos voz às histórias silenciadas de raparigas forçadas a interromper a infância para assumirem responsabilidades que não escolheram — esposas antes do tempo, mães em plena adolescência, vítimas de um sistema que negligencia a sua dignidade.

Texto: Anastácio Chirrute, em Inhambane

O povoado de Mapanzene, localizado na localidade de Mavume, a cerca de 42 quilómetros da vila-sede do distrito de Funhalouro, província de Inhambane, vive uma realidade que condena as raparigas a um futuro de dependência e servidão. Ali, a escola apenas oferece ensino até à 8.ª classe, obrigando os alunos que queiram continuar os estudos a percorrer mais de 10 quilómetros a pé até à vila.

A precariedade da rede de comunicações é gritante. A telefonia móvel é deficitária, com apenas uma operadora activa, e, em certas zonas, os habitantes só conseguem sinal ao subirem às árvores. O acesso à saúde depende de agentes polivalentes elementares ou de caminhadas até à localidade mais próxima, pois não há transportes regulares devido ao estado das vias.

Num contexto em que a educação se torna um luxo, os pais vêem no casamento precoce uma “solução” para aliviar a carga económica. “Tenho 15 anos de idade, parei de estudar porque os meus pais não têm condições para comprar uniforme e material escolar”, conta Anabela Fernando (nome fictício). “Quando eu tinha 12 anos, o meu pai arranjou-me um marido. Tive o meu primeiro filho, mas a relação acabou porque ele tratava-me como escrava. Voltei para casa dos meus pais e eles voltaram a arranjar-me outro marido. É dele que estou agora grávida.”

Casos como o de Anabela repetem-se. Joaquina, de 17 anos, estuda actualmente na 8.ª classe na Escola Secundária Samora Machel, em Mavume. Ela também enfrentou uma gravidez precoce. “Fui engravidada por um mineiro aos 13 anos. Prometeu casar-se comigo, mas era mentira. Deixei a escola na 7.ª classe, tive o meu primeiro filho, depois o segundo. Acabei por perceber que aquela não era a vida que queria. Voltei para casa dos meus pais e retomei os estudos.”

Joaquina lança um apelo: “Gostaria que as meninas se esforçassem, estudassem muito e nunca aceitassem ser desviadas para maus caminhos. Eu estou a estudar para conseguir um emprego e ajudar os meus pais.”

A voz da comunidade: entre a resignação e a esperança

Segundo a população local, os casamentos prematuros são recorrentes e, muitas vezes, com o consentimento dos próprios pais. Eriqueta Mazive, moradora de Mapanzene, não tem dúvidas: “Aqui temos muitas crianças que estão no lar. Os pais fazem isso porque não existe uma escola secundária aqui por perto. Imagina uma criança de 12 anos caminhar 20 km por dia para estudar. Isso não é viável. E também não temos condições para pagar um quarto na vila.”

Uma outra rapariga, com apenas 12 anos e a frequentar a 5.ª classe, partilha a sua história. “Quando tinha 10 anos, apareceu um homem aqui em casa, um curandeiro de 59 anos, que queria casar comigo. Prometeu quatro bois aos meus pais. Eles aceitaram, mas eu fugi de casa. Recuseime. Só voltei quando ele foi embora.”

Autoridades conscientes, soluções limitadas

O administrador do distrito de Funhalouro, Luís Libombo, mostra-se preocupado com a exposição precoce das raparigas. “Temos notado a presença de menores em locais de diversão nocturna, a consumir álcool e, em alguns casos, a prostituíremse.”

Segundo o dirigente, foi criado um programa de prevenção coordenado entre o governo, parceiros e comunidades, para desencorajar essas práticas. “Estamos a intensificar campanhas de sensibilização e a envolver lideranças comunitárias para reduzir os casamentos prematuros.”

O sector da Educação em Funhalouro reconhece que várias crianças não regressaram à escola por terem sido entregues ao casamento. “O balanço de 2024 é positivo. As mensagens de sensibilização estão a surtir efeito. Temos casos de raparigas que foram resgatadas do lar e reintegradas na escola”, afirma um técnico local.

Dados que exigem acção urgente

Segundo o Instituto Nacional de Estatística, 48,4% das mulheres moçambicanas entre os 20 e 24 anos casaram antes dos 18 anos. Em Inhambane, os dados apontam para uma prevalência elevada, sobretudo nas zonas rurais. As raparigas que deixam a escola têm oito vezes mais probabilidade de casar cedo, revela a UNICEF.

Programas como Eu Sou Capaz demonstraram bons resultados ao garantir apoios escolares e mentoria para raparigas. Mas esses programas ainda são insuficientes em zonas remotas como Mapanzene.

As vozes de Anabela, Joaquina, Eriqueta e tantas outras raparigas de Mapanzene ecoam num país onde a legislação proíbe o casamento infantil, mas onde a pobreza, o abandono escolar e as práticas culturais continuam a falar mais alto. Dossiers & Factos reafirma o seu compromisso em estimular o debate sobre os direitos da criança, denunciando estas realidades e exigindo acção concertada para travar a infância hipotecada das raparigas moçambicanas.

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