Há uma narrativa recorrente, tantas vezes repetida por responsáveis políticos, que se tornou quase dogma: em tempos de crise, é necessário apertar o cinto, cortar nas despesas, sacrificar o supérfluo e fazer mais com menos. O discurso é dirigido à população, apelando à resiliência, à contenção e ao “espírito patriótico” que tudo suporta em nome de um futuro melhor. Porém, quando olhamos com atenção para o comportamento de quem lidera, a realidade desmente o discurso — e a dissonância é gritante.
Não se trata aqui de atacar figuras concretas, muito menos de personalizar críticas. O que está em causa é uma cultura política profundamente enraizada e, por isso mesmo, tanto mais perigosa quanto normalizada. Trata-se daquela velha lógica de exigir sacrifícios a muitos enquanto se vive com excessos no topo. Um país onde se pede aos cidadãos que aceitem menos serviços, menos investimentos sociais, menos expectativas, mas onde se assiste, impávidos, à manutenção de privilégios milionários que beneficiam poucos.
Num momento em que escolas funcionam sem carteiras, hospitais sem medicamentos, estradas se degradam sem manutenção e funcionários públicos enfrentam cortes ou atrasos salariais, é eticamente inaceitável que se mantenham ou mesmo se ampliem certas práticas. Adjudicações milionárias feitas por ajuste directo sem a mínima contenção. Viagens oficiais com comitivas extensas e luxuosas, muitas vezes, para tratar de assuntos que poderiam ser resolvidos com menos meios e mais parcimónia. A manutenção de subsídios injustificáveis, ajudas de custo, viaturas de alta cilindrada e outros benefícios que insultam a escassez.
Esta hipocrisia institucionalizada — austeridade para o povo, abundância para o poder — mina a confiança pública, corrompe o sentido de justiça social e sabota qualquer tentativa séria de reforma. Como pedir a um cidadão comum que compre menos pão, que abdique de um transporte escolar ou de um posto de saúde, quando vê um representante do Estado a viajar em classe executiva, acompanhado por séquito inútil e pago pelos mesmos cofres que já não têm dinheiro para a merenda escolar?
Não basta proclamar boas intenções e lançar planos de austeridade selectiva. É urgente dar o exemplo. Um verdadeiro líder compreende que o sacrifício partilhado é o único que se justifica em tempos difíceis. Só com coerência entre o discurso e a acção se pode restaurar a confiança e construir um projecto de desenvolvimento verdadeiramente inclusivo.
O problema, repita-se, não está apenas nas pessoas, mas na cultura de privilégio que contamina a estrutura do poder. Trata-se de um padrão que atravessa governos, partidos e níveis hierárquicos. Uma cultura que normaliza o desperdício no topo enquanto romantiza a pobreza na base. E essa cultura precisa de ser expurgada.
Não se trata de populismo nem de demagogia. Trata-se de justiça e responsabilidade. De coerência e ética pública. Um país não se desenvolve apenas com discursos — desenvolvesse com exemplo, com equidade e com coragem para corrigir vícios instalados. Que se reformem os gastos, que se revejam as prioridades, que se leve à sério o sofrimento de quem, sem culpa, paga sempre o preço das crises.
Austeridade que não começa pelo topo é apenas opressão disfarçada. E o povo, por muito paciente que seja, aprende a distinguir entre sacrifício legítimo e exploração descarada. A história, quando chamada a julgar, raramente perdoa essa diferença.