EnglishPortuguese

PERCURSO ECONÓMICO: “Transição ao capitalismo foi brusca e desastrosa”, MICHAEL SAMBO

“É possível, com todo o investimento mobilizado para Moçambique, termos um rápido desenvolvimento, que não precisaria de 50 anos”, afirmou o economista e consultor da Integrity and Trust Academic, Michael Sambo, numa entrevista exclusiva ao Dossier Económico, na sua análise ao percurso da economia, em alusão aos 50 anos da Independência Nacional. Sambo traça uma leitura crítica da trajectória económica de Moçambique, marcada por sucessivas transições de modelo – do socialismo centralizado ao capitalismo liberal –, sem que o País tenha conseguido estruturar uma base produtiva sólida e inclusiva. Para Sambo, o País atravessa uma crise económica estrutural, com uma industrialização abortada, forte dependência do investimento externo e uma política fiscal que sufoca o tecido produtivo nacional, enquanto oferece amplos incentivos à indústria extractiva. Neste diapasão, ao reconhecer como “grande feito” a viabilização do Investimento Directo Estrangeiro, alerta que, caso este não seja usado com eficiência, poderá gerar atraso na economia. O consultor da Integrity and Trust Academic defende ainda reformas económicas ousadas, uma política industrial nacionalista e o resgate da capacidade interna de transformação como caminhos urgentes para integrar a juventude e relançar o desenvolvimento nacional.

Texto: Milton Zunguze

Dossier Económico (DE): Como avalia o percurso económico de Moçambique durante os 50 anos de independência?

Michael Sambo (MS): Em termos do percurso da nossa economia, ao longo dos 50 anos, foi desafiador, é desafiador mas com muito aprendizado, muitas lições e perspectivas. É desafiador porque, olhando em retrospectiva, a economia de Moçambique no pós-independência foi assumida por moçambicanos e, com isso, provavelmente, ainda não havia políticas muito claras.

DE: Quais foram os principais desafios enfrentados nos primeiros anos após a independência?

MS: Durante esta fase, não houve grandes desenvolvimentos. Aliás, essa é uma das críticas que se faz ao socialismo: por causa da propriedade estatal dos meios de produção, tende a haver letargia ou estagnação, pois não existem interesses capitalistas em jogo. Ninguém é movido pelo lucro. No bloco socialista, experimentam-se, por vezes, taxas de crescimento negativas ou muito baixas, mas o bem-estar tende a ser mais geral. Há uma redistribuição mais equitativa dos recursos. Havendo pobreza, ela é colectiva; havendo riqueza, ela é colectivamente distribuída. Talvez um dos auges deste processo tenha sido o Plano Perspectivo Indicativo (PPI), no qual o Governo mobilizou recursos externos para dinamizar a produção interna. Isto num contexto de grande fome, não só em Moçambique, mas também em África. A dinamização da agricultura teria sido uma alavanca fundamental, mas, apesar do esforço, o plano fracassou. A mobilização de capitais externos não resultou na produção desejada.

DE: O que explica o fracasso do PPI?

MS: A produção nacional continuou a regredir, e houve um processo contínuo de desindustrialização, em que grandes indústrias, como a Incala, Tudor, Mabor e até a Fazizala – esta ligada ao sector têxtil e do calçado – deixaram de funcionar. Tínhamos indústria de baterias, de peças de montagem de viaturas, alimentar, etc. A exportação de produtos primários com algum grau de transformação ainda era possível, mas mínima. O modelo de desenvolvimento colonial, de centro e periferia, manteve-se. A colónia – Moçambique – fornecia matéria- prima, e a metrópole – Portugal – realizava a transformação final. Isto limitou o grau de industrialização interna. Mesmo assim, para produtos como a castanha, algodão e coco, existia alguma transformação local antes da exportação.

DE: E quanto à produção interna?

MS: Havia produção com algum grau de transformação, sobretudo em indústrias alimentares e têxteis. Apesar de não serem fruto de inovação local, essas indústrias eram parte do processo de transferência de tecnologia. Países como Moçambique produziram bens finais para consumo interno e exportação. Contudo, o mercado interno era pequeno e não justificava investimentos massivos. A tentativa do PPI falhou e, com ela, a confiança na mobilização de recursos externos durante o período socialista.

DE: Vamos falar da era capitalista. O que destaca?

MS: Com o fracasso do PPI e a queda do bloco socialista, iniciou-se uma transição brusca para o capitalismo, com a liberalização económica acelerada. Essa mudança revelou-se desastrosa: o Estado retirou-se dos meios de produção, mas o capital privado nacional não estava preparado para assumir o controlo.

DE: Por que considera essa liberalização desastrosa?

MS: Não havia uma classe capitalista consolidada. O que se viu foi a formação de uma elite que se apropriou dos meios de produção do Estado, mas sem conhecimento técnico nem experiência produtiva. Essa elite procurou parcerias externas para colmatar as lacunas, com fracos resultados. O Estado começava a adquirir alguma experiência mas os sectores produtivos foram entregues a privados incapazes, comprometendo o desenvolvimento. Houve, portanto, um desmantelamento da capacidade estatal sem uma verdadeira substituição eficaz.

DE: Existem, no regime capitalista, iniciativas que possam ser consideradas de valia?

MS: Apesar de tudo, é possível assinalar alguns sucessos. Com a retirada do Estado do processo produtivo, a economia foi deixada à mercê de um capital privado que, na verdade, ainda não existia. O Estado passou a desempenhar apenas um papel regulador, e isso em obediência às políticas impostas pelos parceiros multilaterais, no contexto da sua integração ao regime capitalista. Foram feitas várias cedências, nomeadamente a liberalização económica. Só que essas políticas, incluídas nos chamados programas de ajustamento estrutural, acabaram por acelerar, de forma significativa, o processo de decadência da economia nacional.

DE: Com o Estado fora do jogo produtivo, qual passou a ser o seu papel?

MS: Com a adopção do modelo capitalista, o Estado ficou limitado à função de regulação, concentrando os seus maiores esforços na mobilização de investimentos, sobretudo estrangeiros. Importa referir que essa tendência de recorrer a recursos externos já vinha do período socialista. O próprio Plano Perspectivo Indicativo (PPI) baseava-se na mobilização externa de financiamento para fomentar a produção interna, ainda que com execução deficiente. Contudo, no contexto capitalista, as políticas económicas começaram a ser importadas, privilegiando a atracção de capital estrangeiro privado — o chamado investimento directo estrangeiro (IDE) — e até a angariação de fundos para o próprio funcionamento do Estado, dado que a produção interna era fraca e incapaz de gerar receitas suficientes. Assim, o Estado viu-se forçado a mobilizar recursos através de empréstimos, tanto internos como externos. Esta prática tornou-se uma constante. O Orçamento Geral do Estado passou a ser, durante vários anos, financiado em mais de 50% com recurso à dívida. Houve depois alguma redução dessa dependência, motivada por constrangimentos relacionados com a má gestão da dívida, nomeadamente o escândalo das dívidas ocultas, que levou os parceiros a cortarem os financiamentos, baixando essa fatia para abaixo dos 50%. Contudo, esse corte teve como consequência um aumento do endividamento interno, que se tornou mais nocivo. Vale recordar que o endividamento externo de natureza comercial já tinha começado antes, apesar de algumas iniciativas internacionais de perdão da dívida, como a HIPC I e II (Iniciativa para os Países Pobres Muito Endividados), resultantes da gestão deficitária dos recursos obtidos. Moçambique continuou, assim, dependente de recursos externos, tanto para o funcionamento do Estado como para cobrir défices orçamentais. Inicialmente, a maior parte da dívida era concessional — ou seja, empréstimos em condições vantajosas, frequentemente confundidos com donativos —, concedida por instituições multilaterais e bilaterais. A acumulação dessas dívidas, muitas vezes para cobrir despesas correntes, tornou-se insustentável, obrigando a novos perdões. Ainda assim, esses recursos não foram, em geral, canalizados para investimentos estruturantes, mas sim para sustentar a máquina do Estado. No processo de liberalização, o Estado manteve a responsabilidade quase exclusiva sobre os sectores sociais — saúde, educação, etc. — e sobre infra-estruturas públicas, como estradas, pontes, portos, aeroportos e demais infra-estruturas essenciais ao desenvolvimento económico. A esses sectores continuava a competir ao Estado assegurar investimento, mesmo num modelo que previa uma retirada da sua intervenção directa na economia.

Gostou? Partihe!

Facebook
Twitter
Linkdin
Pinterest
Search

Sobre nós

O Jornal Dossiers & Factos é um semanário que aborda, com rigor e responsabilidade, temáticas ligadas à Política, Economia, Sociedade, Desporto, Cultura, entre outras. Com 10 anos de existência, Dossiers & Factos conquistou o seu lugar no topo das melhores publicações do país, o que é atestado pela sua crescente legião de leitores.

Notícias Recentes

Edital

Siga-nos

Fale Connosco