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EDITORIAL D&F: Violência sem rosto, mortes sem explicação

Multiplicam-se, de forma alarmante, os relatos de execuções sumárias na cidade da Matola, muitas delas em circunstâncias obscuras e envolvendo, directa ou indirectamente, agentes da Polícia da República de Moçambique. Os casos sucedem-se com tal frequência que já não se trata de coincidência ou simples coincidência de eventos: estamos perante um padrão de violência sistemática que ameaça transformar a maior cidade industrial do país num território dominado pela lei do silêncio e da impunidade.

Na última semana, quatro indivíduos foram mortos a tiro em plena via pública. A versão oficial, apresentada pela polícia, indica que os mesmos foram baleados pelas forças de defesa e segurança durante uma alegada perseguição. Contudo, não houve tentativa de captura, nem apresentação pública de provas ou circunstâncias que justifiquem o uso letal da força. Mais inquietante ainda é o facto de, após os disparos, os supostos autores — agentes da lei — se terem posto em fuga, comportamento mais próprio de criminosos do que de profissionais do Estado.

Ora, não é modus operandi da polícia moçambicana proceder à neutralização de suspeitos e, depois, abandonar o local como se de bandidos se tratasse. O seu dever é capturar, apresentar à justiça e colaborar com o sistema legal. Quando a polícia passa a executar presumíveis criminosos e se furta à responsabilidade de prestar contas, rompe-se o contrato fundamental entre o Estado e o cidadão: o de garantir segurança com base na legalidade.

O mais preocupante é que este tipo de actuação não é novo. Na semana anterior, na zona da Manduca, próxima ao Estádio da Machava — que acolhera há pouco tempo o jubileu dos 50 anos da independência nacional — mais uma execução deixou a população em estado de choque. Testemunhas relatam que, durante a acção, uma senhora que por lá circulava foi atingida por balas perdidas. A sua condição permanece desconhecida, mas o episódio reforça o clima de medo generalizado que se instalou na cidade.

Hoje, andar pelas ruas da Matola é um risco. Pior ainda é aceitar ou dar boleia. A qualquer momento, o carro em que se circula pode tornar-se alvo de um ataque mortal dos chamados esquadrões da morte — um nome pesado, mas cada vez mais próximo da realidade. Estas forças sombrias actuam com precisão cirúrgica, sem deixar rasto nem sofrer consequências. E mais grave: sem que o Estado dê sinais claros de pretender estancar esta vaga de violência extrajudicial.

A violência e o arbítrio corroem as fundações de qualquer democracia. Quando o Estado é cúmplice — por acção ou omissão — de actos que violam os direitos humanos, instala-se a desconfiança. A confiança no aparelho judicial esmorece, e os cidadãos vêem-se obrigados a viver sob o primado do medo, receosos de que uma simples deslocação possa ser a última.

O impacto vai para além do plano moral e institucional. Numa cidade que alberga o maior parque industrial do país, estes episódios comprometem gravemente o ambiente de negócios. Qual investidor estrangeiro ou nacional poderá colocar capitais numa cidade onde o Estado não garante sequer o direito à vida? A insegurança urbana é, hoje, uma das maiores ameaças à atracção de investimentos e à recuperação económica pós-pandemia.

A retórica oficial, centrada no combate ao crime organizado, não pode servir de cortina para abusos sistemáticos e execuções sumárias. Mesmo que os mortos fossem de facto criminosos — e não há provas disso — a polícia não pode ser juiz, júri e carrasco. Essa prática desvirtua os fundamentos da justiça e arrasta Moçambique para o fosso do autoritarismo e da barbárie institucionalizada.

É urgente, por isso, uma resposta firme do Estado. A Procuradoria-Geral da República deve abrir investigações independentes sobre todos os casos reportados. A Polícia da República de Moçambique precisa de ser chamada a explicar as suas acções, e os agentes envolvidos — se confirmadas as responsabilidades — devem ser exemplarmente punidos. O silêncio não é opção, e a negação agrava a crise.

A Assembleia da República também não se pode alhear. Os representantes do povo devem interpelar o Governo, exigir relatórios, propor reformas e reforçar os mecanismos de controlo democrático sobre as forças de defesa e segurança. O poder executivo, por sua vez, tem a obrigação moral de parar esta espiral antes que o país mergulhe numa crise institucional mais profunda.

Numa altura em que se celebra meio século de independência, o maior tributo que se pode prestar aos heróis da libertação nacional é garantir que a liberdade pela qual lutaram se traduza num Estado que respeita a vida e os direitos dos seus cidadãos. Permitir que o medo se instale e que o Estado se transforme em máquina de repressão é trair o espírito de 25 de Junho.

A Matola precisa de voltar a ser cidade de trabalho, progresso e esperança — não palco de execuções sem rosto nem justiça. O tempo de agir é agora. Antes que o próximo corpo caia no asfalto e mais uma família perca um ente querido sem saber porquê.

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