– “Foi triste ver gente lúcida defender o direito de fazer mal aos outros”
Os 50 anos da Independência Nacional, assinalados a 25 de Junho, constituíram-se no pretexto ideal para ouvir o sociólogo Elísio Macamo sobre progressos, desafios e perspectivas para Moçambique. Longe de leituras simplistas, limitadas apenas a sucessos e fracassos, o pensador moçambicano, radicado na Suíça, onde lecciona na Universidade de Basel, propõe uma reflexão profunda sobre a essência da arte de governar, o que, na sua visão, significa simplificar a vida. Para Macamo, a política é imprescindível na promoção de uma convivência sã, daí condenar a violência que a destrói. Ao falar em violência, o sociólogo refere-se precisamente às manifestações que tomaram conta do País após as eleições gerais de Outubro de 2024, episódios que não só o deixaram “estarrecido”, como demonstraram que, na sua opinião, “ainda não estamos preparados para a mudança de que o País precisa”.
Texto: Dossiers & Factos
D&F: Professor, olhando para estas cinco décadas de independência, qual é o balanço que faz do percurso do País? O que conseguimos construir de sólido como Nação?
Elísio Macamo (EM): Conseguimos dar forma e substância à ideia de um País. Não creio que possamos menosprezar esse feito. Antes de Junho de 1975, Moçambique não existia. Depois disso, tivemos BI que diz que somos moçambicanos. Para quem teve uma história marcada pela luta pela autodeterminação, isso é o que de mais sólido pode existir. Não existe nenhuma lei da natureza que diga que uma independência tem, necessariamente, de resultar em melhores condições de vida. Não é que não seja importante. É. Mas se diminui a importância da luta pela independência ao reduzi-la a isso. Só o facto de ela nos proporcionar um outro quadro para reclamarmos uma vida melhor, faz muita diferença e dá a importância que ela tem.
“III Congresso particularizou uma luta colectiva”
D&F: Que momento marcou uma viragem decisiva, para o bem ou para o mal, na história de Moçambique?
EM: Para mim, o momento mais negativo foi em 1977, no III Congresso da Frelimo, quando esta se proclamou partido marxista-leninista de vanguarda com base na aliança operário-camponesa. Percebo porque o fez, no entusiasmo revolucionário da época, que não era exclusivo de Moçambique. Só que violou os ideais pelos quais se fez a luta pela independência, pois praticamente particularizou uma luta que era – e devia continuar a ser – colectiva. Transformou o anseio pela liberdade num projecto de conformidade com os interesses particulares dos membros da Frelimo, ignorando o pluralismo que sempre nos caracterizou. Fez com que pessoas que acabavam de se tornar moçambicanas deixassem de o ser para passarem a ser “moçambicanas da Frelimo”.
“A nossa cultura política é hostil à cidadania”
D&F: Nesta mesma linha, o que mais o surpreendeu positivamente neste percurso de 50 anos? E o que mais o desiludiu?
EM: Surpreender talvez não, mas considero extraordinário o que conseguimos ao nível da formação. Para um País que praticamente não tinha nada, o número de doutores, mestres, licenciados e técnicos é verdadeiramente impressionante. Tenho muito orgulho de ser moçambicano. O que me desilude é a nossa cultura política – no governo e na oposição – que continua a ser hostil à cidadania. Tenho dito sempre que governar é criar condições para governar. Isso significa uma aposta na criação, ampliação e protecção de espaços de exercício da cidadania no seu sentido republicano: quem é governado tem que ter a possibilidade de controlar quem o governa. No dia em que os nossos governantes entenderem isso, muita coisa mudará para melhor. Enquanto isso não acontecer, seremos reféns de uma lógica política que confunde o acesso ao poder com o serviço público.
D&F: Tendo em conta o ambiente político de Moçambique, considera que conseguimos desenvolver uma verdadeira cultura democrática e cívica?
EM: Estamos a envidar esforços nesse sentido. Ninguém nasce democrata. Ninguém consegue ser sempre democrata porque somos todos humanos, temos interesses e somos falíveis. Há, contudo, algumas coisas que precisam de ser observadas para que nos movimentemos nesse sentido. Uma tem a ver com a nossa disponibilidade para aceitar que seja legítimo que outras pessoas pensem o País de forma diferente da nossa. Aqui, infelizmente, a porca torce o rabo no nosso País. A outra coisa tem a ver com uma confusão intelectual que fazemos em relação ao conceito de democracia. Perdemos muito tempo a querer demonstrar que se trata de um conceito de fora que não serve entre nós. Curiosamente, fazemos isso quando falamos a partir de uma posição de poder. O que devíamos fazer era verificar que coisas são importantes para uma convivência sã. Eu acho que a liberdade de expressão, o direito de interpelar criticamente quem nos governa, a liberdade de decidirmos o que é bom para nós mesmos, etc., são coisas importantes que, aliás, são garantidas pela nossa Constituição. O passo a seguir seria verificar que constelação de instituições e regras pode garantir que cada um de nós usufrua disso tudo. O nome que dermos a isso – seja “democracia”, “Nhonga”, ou outro qualquer – pouco importa.
D&F: Se tivesse de propor três prioridades absolutas para os próximos 10 anos, quais seriam?
EM: Proporia uma maior aposta na melhoria do serviço público. O nosso principal problema no País não é a fome, a falta de habitação, a má qualidade do ensino, etc. São coisas importantes, claro, mas não servem como métrica política. O nosso problema é que temos um País que atribui pouca importância à forma como serve os cidadãos. O desafio é simplificar a vida, porque desenvolvimento é isso mesmo: criar condições que nos permitam fazer o que queremos fazer. Só que essa lógica entra em choque com uma mentalidade política assente na ideia de que o Governo sabe melhor o que é bom para todos nós. Não sabe, nem pode saber. Sabe o que é bom para si mesmo.
D&F: O professor tem enfatizado a importância de “fazer as coisas com a cabeça”. Que papel pode ter a reflexão crítica e o pensamento social num País marcado por urgências básicas como pobreza, fome e desemprego?
EM: A reflexão crítica é fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade, pois esta constrói-se na deliberação. Quando vejo pessoas a insistirem na ideia de que só com violência é que se pode mudar o País para melhor, fico estarrecido, pois essa é a mentalidade que comprometeu muito do que a Frelimo fazia de forma bem-intencionada. É um erro de raciocínio sem fundamento empírico. No mundo, há mais exemplos de mudanças pacíficas bem-sucedidas do que de mudanças violentas bem-sucedidas. Isto por uma razão simples: a violência mata a política – justamente aquilo que é imprescindível para uma convivência sã. As manifestações violentas pós-eleitorais mostraramme que não estamos preparados para a mudança que o País necessita. Ver gente lúcida a defender o seu direito de fazer mal aos outros na luta pelos seus direitos foi um triste espectáculo. Se der uma volta pelo mundo, verá que bons exemplos de desenvolvimento são de países sem recursos. Com isso quero dizer que o discernimento é um recurso importante no combate à fome, à pobreza e ao desemprego.
D&F: Professor, se tivesse de escrever uma carta aberta aos moçambicanos em 2075, no centenário da independência, o que diria?
EM: Ufa! Faria talvez algumas perguntas: “Já se aperceberam de que a independência não é um ponto de chegada, mas sim uma pergunta que temos de responder todos os dias?”; “Já sabem o que significa ser dono do nosso destino?”; “Já entenderam que o sucesso de uma independência não está nos seus feitos imediatos, mas na vitalidade do ideal que a moveu?”; “Entenderam finalmente que errar é humano, mas persistir no erro em nome do orgulho partidário é trair o espírito da independência?”; “Conseguem ver agora que o verdadeiro fracasso não é ter falhado, mas ter desistido de aprender com os falhanços e que corrigir erros não é fragilidade, mas precisamente o que fortalece uma nação livre?”
D&F: Qual é o seu maior desejo para Moçambique daqui a 50 anos? E qual é o seu maior receio?
EM: O meu maior desejo é que Moçambique se torne um País seguro para o exercício da cidadania. O meu maior receio é que a governação continue a criar espaço para a emergência contínua de pop