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PRECARIEDADE LABORAL: Seguranças privados são verdadeiros “escravos” com armas

O sector da segurança privada em Moçambique continua a enfrentar sérios desafios, marcados por condições laborais extremamente precárias e uma regulamentação quase inexistente. Embora os seguranças privados desempenhem um papel vital na protecção de pessoas e bens, por detrás da postura firme e do uniforme escondem-se histórias de sacrifício, dificuldades económicas e uma rotina dura, pouco valorizada pelos empregadores e ignorada pelo Governo, concretamente pelos ministérios do Trabalho, Género e Segurança Social e do Interior. É, literalmente, um grupo de “escravos armados” abandonados à sua sorte.

Texto: Clara Mulima

Este sector, em Moçambique, é um dos que mais cresceu nos últimos anos, impulsionado pela proliferação de instituições financeiras, estabelecimentos comerciais, condomínios e órgãos do Estado que contratam serviços terceirizados de segurança. Contudo, este crescimento não tem sido acompanhado por uma melhoria nas condições laborais dos profissionais que garantem a protecção desses espaços. A maioria das empresas do sector não canaliza os descontos salariais para o Instituto Nacional de Segurança Social (INSS), e registam-se casos frequentes de salários em atraso, ausência de contratos formais, negação de licenças remuneradas, falta de equipamentos de protecção e remunerações abaixo do legalmente estabelecido.

Além disso, os guardas são frequentemente submetidos a cargas horárias extenuantes, com turnos de 24 horas, sem pagamento de horas extraordinárias. Em muitos postos de trabalho, não existem guaritas nem locais apropriados para repouso, expondo os trabalhadores ao frio, à chuva e a outras adversidades.

Várias histórias e um traço comum — frustração

Apesar de todas essas dificuldades, muitos permanecem na profissão por não terem outra alternativa de subsistência. O Dossiers & Factos conversou com alguns seguranças afectos a diferentes empresas na cidade de Maputo, que partilharam relatos semelhantes de frustração, cansaço e abandono. Cheila Arlindo, segurança privada, mãe solteira e afectada a um posto escolar, diz que é difícil ser mulher neste sector.

“Por falta de emprego, aceitei fazer o treinamento e hoje estou aqui. Trabalhamos 24 sobre 24, mas a empresa atrasa os salários dois ou três meses. Tenho renda, despesas, filhos para sustentar e não posso contar com esse dinheiro, porque ele simplesmente não vem”, relata. Acrescenta ainda que a empresa onde trabalha não fornece os equipamentos necessários, especialmente durante o tempo frio. “Agora que é inverno, sofremos muito. E ainda temos sorte…”

O sector precisa de atenção urgente. “Se não fossem os seguranças, muitos bens estariam vulneráveis. Protegemos vidas e património, mas somos tratados como se não valêssemos nada. As empresas são privadas, sim, mas o Governo devia fiscalizar. Estamos a trabalhar sem contrato, sem direitos, e quando somos despedidos, não temos a quem recorrer.”

Arlindo Gomes, com três anos de experiência no sector, também reconhece as dificuldades, embora diga que está actualmente num posto com melhores condições. “Trabalho a proteger uma sala de aula, numa reserva dos crentes muçulmanos. Aqui temos onde estar, o frio não incomoda muito e o patronato trata-nos com respeito. Mas não é a realidade da maioria. Tenho colegas que estão em sítios abertos, sem guarita, ao frio e à chuva. A falta de consideração é geral. Somos os primeiros a chegar e os últimos a sair, mas muitas vezes nem somos cumprimentados”, lamenta.

Manuel Jorge, com cinco meses na profissão, confirma que o salário que recebe está abaixo do salário mínimo. “A rotina é normal, mas os atrasos salariais dificultam muito a nossa vida. O salário já é pouco e, mesmo assim, não vem a tempo. Mas temos de aguentar, porque ficar em casa também não serve.”

Vítimas de contratos irrealistas e do descaso

De acordo com Jacob Sambane, secretário nacional para a área da organização no Sindicato Nacional da Segurança Privada (SINTESP), as denúncias dos trabalhadores são reais e generalizadas. “Há empresas que pagam abaixo do salário mínimo, não canalizam os descontos para o INSS e forçam os trabalhadores a fazer turnos de 24 horas sem alimentação, descanso ou equipamento. Há trabalhadores com 10, 15 anos sem férias e, pela lei, essas férias caducam. Mesmo que recorram ao tribunal, só conseguem reaver os dois últimos anos. O resto está perdido”, explica.

Sambane reconhece que existem empresas que cumprem com as obrigações legais, pagam o salário mínimo (8.190 meticais), canalizam os descontos, respeitam os turnos de 12 horas e o gozo de férias — mas lamenta que essas sejam a minoria.

Sobre esta matéria, em 2019, o sindicato realizou reuniões e interagiu com o Ministério do Trabalho, mas não obteve resposta. “Acabámos por escrever ao então Presidente da República, Filipe Nyusi, que deu instruções aos Ministérios do Trabalho e do Interior para que o problema fosse resolvido. Houve algumas inspecções, mas sem resultados palpáveis para os trabalhadores”, relata Sambane. Apesar das frustrações, o sindicato continua a propor soluções, alertando que a proliferação de empresas de segurança é fruto da liberdade de constituição empresarial e precisa de ser acompanhada por uma fiscalização rigorosa do Estado.

Para o SINTESP, o problema também reside na lógica económica do sector. “Não é possível que uma empresa que cobra 15 mil meticais por posto queira pagar salário mínimo e ainda cumprir a lei. O que fazem é colocar dois trabalhadores no mesmo posto, a fazerem 24 horas seguidas, recebendo abaixo do mínimo. A causa disso está no valor irrealista dos contratos firmados pelas empresas.”

A realidade dos seguranças privados é crítica, e o trabalho exercido por eles é essencial para a ordem e segurança urbanas, mas permanecem ignorados por um sistema que falha em regulamentar, fiscalizar e proteger. Pedem respeito, contratos formais, salários justos, condições básicas de trabalho e um papel mais activo do Governo na defesa dos seus direitos. Até lá, continuam de pé, silenciosos, com os uniformes gastos, garantindo a protecção de bens alheios enquanto os seus próprios direitos permanecem desprotegidos.

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