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Confissões religiosas reivindicam mais envolvimento nas políticas públicas

Num país marcado pela diversidade cultural e pela pluralidade religiosa, os líderes espirituais moçambicanos reivindicam maior protagonismo nas decisões governamentais, alegando que têm sido sistematicamente excluídos de processos que afectam directamente a vida das comunidades que servem. De guias espirituais a mediadores sociais, os religiosos desempenham múltiplos papéis nas suas comunidades — muitas vezes substituindo o próprio Estado onde este se mostra ausente.

Texto: Hélio de Carlos

Durante episódios de crise como os ataques em Cabo Delgado, os tumultos pós-eleitorais ou os impactos das alterações climáticas no centro do país, as confissões religiosas destacaram-se na mobilização de apoio humanitário, no acolhimento de deslocados e na reconstrução da coesão social. Apesar desse envolvimento constante, muitos líderes religiosos denunciam uma invisibilidade institucional que limita o seu contributo em processos formais de governação e desenvolvimento.

“Não servimos apenas para rezar. Fazemos aconselhamento nas comunidades, mitigamos conflitos e trabalhamos pela paz social. Por que não somos chamados a participar em concursos públicos ou projectos governamentais?”, questionou um dos líderes religiosos durante um encontro realizado na Província de Maputo.

Os intervenientes defendem que os projectos de financiamento do Governo deveriam incluir iniciativas religiosas e propõem que, à semelhança do Presidente da República, também os administradores distritais, governadores e chefes de localidades passem a ter conselheiros religiosos para fortalecer a convivência social e o diálogo interreligioso.

Pregação da prosperidade e fragmentação da fé

No interior das igrejas, há também vozes críticas. Muitos líderes admitem que parte da crise moral da sociedade moçambicana nasce no seio das próprias confissões religiosas, onde proliferam discursos centrados na prosperidade material em detrimento dos valores bíblicos e éticos. “Estamos mais preocupados em encher templos e obter ganhos económicos do que em transformar moralmente os fiéis”, lamentou um pastor.

Para além disso, as chamadas “profecias da desgraça”, que atribuem causas sobrenaturais — muitas vezes envolvendo membros da família — às dificuldades pessoais dos crentes, têm sido apontadas como responsáveis por conflitos familiares e abandono de idosos. Tais práticas, segundo os líderes entrevistados, assemelhamse a práticas da medicina tradicional e não têm fundamento doutrinário nas igrejas cristãs.

Xivotsongo, valores perdidos e juventude desorientada

Outro tema transversal nas declarações dos líderes religiosos é a crescente perda de valores entre os jovens, associada à banalização do consumo de bebidas alcoólicas — com destaque para o chamado xivotsongo, muito popular entre adolescentes, inclusive em idade escolar. Para os religiosos, o fenómeno agrava os níveis de criminalidade e fragiliza o tecido social.

“Se não educamos em casa, não poderemos educar o filho do outro”, alertou o líder António Cume, insistindo que a base da formação moral começa na família e deve ser reforçada nas comunidades religiosas. Outros intervenientes foram mais longe, propondo o encerramento de fábricas de bebidas espirituosas.

Entretanto, nem todos consideram o álcool como causa primária. “Talvez não seja o problema em si, mas o efeito de um mal maior que ainda não conseguimos identificar”, sugeriu um dos líderes, apelando a uma reflexão mais profunda sobre os factores estruturais que levam os jovens ao consumo abusivo.

Religião e tecnologia: a fé no século XXI

Com o avanço das tecnologias digitais e a ascensão da inteligência artificial, muitos religiosos alertam para a necessidade urgente de modernização das congregações. Embora reconheçam que muitos moçambicanos ainda estão desconectados das redes sociais, os jovens — principais alvos das mensagens religiosas — já operam nesse universo digital.

“Estamos a entrar numa nova revolução tecnológica e não podemos continuar a pregar como há 40 anos. Precisamos de adaptar os nossos métodos à linguagem e aos canais do nosso tempo”, defendeu um líder.

Fragmentação espiritual: “Somos esposas de um mesmo homem”

Para além das críticas à actuação governamental e aos desafios internos, os próprios religiosos reconhecem uma crescente desunião no seio das confissões religiosas. “Parece que somos esposas de um mesmo homem, cada uma a puxar para o seu lado”, ironizou um pastor, referindo-se à falta de unidade entre profetas e pastores.

O apelo geral é claro: é necessária maior coesão entre cristãos, muçulmanos e outros credos, de forma a reforçar a acção comunitária e combater a exclusão social de forma concertada. “A comunidade é uma só. O muçulmano pode agir em benefício do cristão e vice-versa”, acrescentou outro interveniente.

Estado prepara nova Lei da Liberdade Religiosa

Confrontado pelo Dossiers e Factos sobre estas inquietações, o director nacional das Acções Religiosas, Sheik Saíde, reconheceu o papel vital das confissões religiosas e confirmou que está em curso a revisão da Lei da Liberdade Religiosa, ainda baseada na legislação colonial (Lei n.º 4/71).

A nova proposta resulta de pedidos das próprias confissões durante conferências nacionais e poderá ser submetida ao Parlamento em breve. “O Estado laico não é um Estado sem religião. É um Estado que respeita todas as crenças, mas exige que as mesmas actuem dentro das normas e respeitem a dignidade humana”, sublinhou.

Quanto à questão da poluição sonora causada por algumas igrejas, Saíde esclareceu que já existem normas legais para sancionar os infractores e que, em casos extremos, o Ministério da Justiça poderá propor o encerramento de confissões que violem sistematicamente a lei.

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