A soberania de um Estado não se negocia, não se subcontrata, nem se defende por procuração. Em Cabo Delgado, a missão militar do Ruanda representa, sem dúvida, um marco importante na estabilização de uma província assolada pelo terrorismo desde 2017. A rapidez, eficácia e disciplina com que as forças ruandesas responderam contrastam com o falhanço inicial das Forças de Defesa e Segurança (FDS) moçambicanas, apanhadas desprevenidas, mal treinadas e mal equipadas para um conflito assimétrico. No entanto, é perigoso que a defesa nacional continue dependente de aliados externos. Nenhuma nação se sustenta com a sua soberania militar alugada.
Moçambique deve reconhecer o mérito do apoio do Ruanda e da Missão da SADC, que operou em simultâneo. Seria ingénuo e injusto não o fazer. Mas não pode transformar este apoio em muleta permanente. A soberania, enquanto expressão máxima da autoridade estatal, deve assentar, em primeiro lugar, na capacidade do próprio país de garantir a ordem, proteger os cidadãos e defender a integridade territorial. Caso contrário, a presença de tropas estrangeiras, por mais bem-intencionadas que sejam, acabará por corroer o sentido de autodeterminação e colocar em risco a autonomia estratégica do Estado moçambicano.
A lição da Ucrânia é, neste momento, exemplar. Um país soberano, que confiou demasiado nas garantias ocidentais, abdicou do seu arsenal nuclear em troca de promessas de segurança. Quando a ameaça se concretizou, foi invadido por uma potência militar muito superior e viu-se reduzido a um papel de pedinte internacional. Apesar do heroísmo da resistência ucraniana e da solidariedade internacional, o preço da dependência estratégica revelou-se elevadíssimo. Moçambique deve evitar trilhar esse mesmo caminho, ainda que a natureza das ameaças seja diferente.
O terrorismo em Cabo Delgado, de base jihadista, é uma ameaça difusa, alimentada por redes transnacionais, marginalização local e exploração de vulnerabilidades institucionais. Exige uma resposta multidimensional: militar, social, económica e política. Mas o pilar militar não pode continuar entregue ao Ruanda. É urgente construir capacidades internas robustas, com formação adequada, inteligência operacional e equipamentos compatíveis com a natureza do combate.
Além disso, a confiança do povo moçambicano nas suas próprias Forças de Defesa e Segurança foi abalada. Recuperar essa confiança passa por reformas profundas, pelo investimento sério nos recursos humanos e pela valorização do papel das FDS como guardiãs da pátria — não como instrumentos políticos ou forças de contenção social. O Estado deve restaurar a autoridade do comando nacional sobre os teatros de operações e garantir que as decisões estratégicas não sejam terceirizadas.
Não se trata apenas de uma questão de orgulho nacional. É uma questão prática de sobrevivência como Estado soberano. Nenhum país com vastos recursos naturais e localização geoestratégica pode dar-se ao luxo de deixar a sua defesa nas mãos de terceiros. Os interesses dos aliados nunca serão plenamente coincidentes com os nossos. A ajuda externa deve ser transitória, não permanente. Deve capacitar, não substituir.
Adiar esta transição poderá tornar Moçambique refém dos próprios salvadores. As alianças devem ser bem-vindas, mas nunca podem ser confundidas com garantias de soberania. A dependência militar é a antecâmara da dependência política. Hoje, a presença do Ruanda é voluntária e cooperativa. Mas amanhã, poderá haver interesses divergentes ou tensões geopolíticas que coloquem Moçambique numa posição delicada.
Mais do que uma questão de força, a segurança nacional é uma questão de preparação e vontade. Há que reconhecer os erros do passado, mas também reafirmar a determinação de nunca mais permitir que grupos armados dominem distritos inteiros, assassinem civis e forcem deslocações em massa. Isso passa pela presença efectiva e eficaz do Estado em todas as frentes: segurança, justiça, desenvolvimento e governação local.
O que está em jogo é mais do que a integridade territorial. Está em causa o próprio contrato social entre o Estado e os cidadãos, sobretudo nas zonas historicamente negligenciadas. Quando os cidadãos percebem que o seu próprio país não tem capacidade de os proteger, o tecido nacional começa a desfiar-se. É esse perigo que Moçambique deve evitar com urgência e visão estratégica.
O momento é propício para uma viragem. O relativo sucesso da intervenção estrangeira deve servir como impulso para a reconfiguração interna das FDS, e não como pretexto para a sua estagnação. Com a anunciada retirada da Missão da SADC, e com a permanência ainda indefinida do contingente ruandês, o tempo de agir é agora. Cada dia de adiamento mina a soberania.
Por fim, é necessário um compromisso político nacional claro, transversal às forças partidárias, sobre a prioridade da defesa e segurança como pilares do Estado. Investir nas FDS, no serviço de inteligência e na doutrina de defesa nacional não deve ser encarado como luxo, mas como obrigação soberana. Moçambique não pode ser um Estado independente de jure, mas tutelado de facto. O País precisa de se preparar para defender-se por si. A lição está à vista: soberania não se terceiriza.