Num tempo em que as nações disputam a afirmação da sua identidade com mais vigor do que nunca, Moçambique parece caminhar na direcção contrária, hesitando em reconhecer o valor da sua própria cultura. A promoção da música, da arte, da gastronomia, da língua e de todas as formas de expressão cultural moçambicana não pode continuar a ser vista como uma extravagância patriótica, mas sim como um imperativo de soberania. Não se trata de xenofobia cultural, mas de uma questão de dignidade nacional.
É de uma estranheza gritante o que se vive em muitos espaços públicos e privados deste país. Numa simples ida a um restaurante na capital ou noutra grande cidade moçambicana, é cada vez mais comum que o ambiente sonoro seja dominado por música estrangeira — muitas vezes repetitiva, alienante, e completamente desconectada das nossas raízes. Pode-se estar cinco horas inteiras a consumir numa esplanada moçambicana, e nem uma só canção local ecoa das colunas. Isso não é apenas absurdo. É sintomático de uma patologia social profunda: a vergonha do que somos.
A cultura não é apenas uma manifestação estética ou uma forma de entretenimento. É uma âncora civilizacional. Ela constitui o cimento invisível que une uma nação, dá-lhe forma, coerência, sentido de pertença. Quando deixamos que ela seja abafada — não por imposição externa, mas por desprezo interno — abrimos brechas graves na estrutura da nossa identidade colectiva. O resultado é o que se vê: jovens que não conhecem os nomes dos maiores músicos do seu país, gestores de espaços culturais que desprezam a produção local, cidadãos que se envergonham de falar nas línguas nacionais.
A questão da língua, aliás, é outro sintoma doloroso dessa distopia cultural em que vivemos. É inaceitável que em eventos organizados em Moçambique — por instituições nacionais ou em parceria com organismos estrangeiros — a língua principal de comunicação seja o inglês, com tradução posterior para português. Isto, num país cuja língua oficial é o português, e onde vivem milhões de moçambicanos que nem sequer dominam o inglês. É uma inversão de lógica, uma anomalia consentida e patrocinada, que revela o grau de subalternidade cultural a que nos entregámos.
Mais chocante ainda é a experiência de um cidadão moçambicano num voo da companhia aérea nacional, a LAM. Em pleno território aéreo moçambicano, embarca-se num avião onde os anúncios são feitos, primeiro e por vezes exclusivamente, em inglês, e onde o atendimento é, muitas vezes, preferencialmente nessa língua. Para quem somos nós, afinal? Para agradar a quem? Que tipo de país promove um serviço nacional em detrimento da língua que congrega os seus próprios cidadãos?
A cultura moçambicana não pode continuar a ser tratada como um “segmento”, como uma nota de rodapé nos grandes discursos sobre desenvolvimento. Ela deve ser integrada como pilar fundamental do projecto nacional. Promover a cultura é proteger o país de se dissolver num anonimato global onde todos falam igual, pensam igual, ouvem igual — mas não são nada. A cultura é um acto político, é um exercício de soberania.
Mais do que eventos folclóricos e espectáculos pontuais, precisamos de políticas culturais integradas e coerentes. Políticas que obriguem restaurantes a incluírem música local nas suas programações. Que condicionem licenças de grandes eventos à utilização da língua portuguesa como língua de base. Que exijam da LAM uma política cultural clara e assertiva, onde se ouça música moçambicana, onde se valorize a história, os poetas, os contadores de estórias, os sabores e saberes do país.
O problema não é falta de artistas, de escritores, de músicos, de linguistas, de actores ou de conteúdos. Moçambique está cheio de vozes criativas e vibrantes. O problema está no sistema de desvalorização contínua do que é nosso, que se reproduz no ensino, na comunicação social, nas políticas públicas, nos eventos culturais e na mentalidade colectiva. Não basta dizer que temos orgulho da nossa cultura. É preciso agir em conformidade.
O combate ao colonialismo não terminou com a proclamação da independência. Ele estendese hoje ao plano simbólico, onde as ideias, os valores e os gostos são o novo campo de batalha. Uma sociedade que consome apenas o que vem de fora é uma sociedade que se autocoloniza. E uma nação que permite isso sem resistência está a assinar, lentamente, o atestado de morte da sua soberania.
É tempo de parar de nos comportarmos como convidados no nosso próprio país. O que somos deve ocupar o centro — da escola ao parlamento, do restaurante ao avião, do festival ao gabinete ministerial. A cultura moçambicana deve ser a protagonista da nossa história contemporânea, não uma figurante tolerada à margem do progresso importado.
Promover a cultura não é opcional. É estratégico. E se a juventude de hoje crescer a ouvir mais o exterior do que o interior, a identificar-se mais com símbolos importados do que com os da sua terra, estaremos a produzir uma geração deslocada, fragilizada e cronicamente despatriada. E a culpa não será deles. Será de quem permitiu que se apagasse o fogo da alma moçambicana.
Valorizemos o que é nosso. Impunhamos, com firmeza e convicção, a cultura moçambicana em todos os níveis. Porque um país que se respeita, começa por dar-se a conhecer, sem medo nem vergonha, ao mundo — e a si mesmo.