Mais de dois anos após as violentas inundações que devastaram a cidade de Maputo, 471 famílias ainda sobrevivem em centros de acolhimento, mergulhadas na incerteza, na precariedade e no esquecimento institucional. Promessas foram feitas. Compromissos foram anunciados. Mas a dura realidade é que centenas de cidadãos continuam sem um lar digno, entregues a condições indignas que desafiam o conceito de humanidade.
Texto: Clara Mulina
A tragédia começou em 2023, agravada pela fúria dos ciclones Freddy e Filipe, que devastaram bairros inteiros, arrastaram casas e destruíram vidas. A resposta inicial do Governo e do Instituto Nacional de Gestão e Redução do Risco de Desastres (INGD) foi célere: centros de acolhimento foram montados, alimentos distribuídos, discursos proferidos. Mas o tempo passou. A solidariedade esmoreceu. E a promessa de reassentamento esfumouse com as águas que nunca chegaram a ser totalmente drenadas.
Ana Marrengula, residente no centro juvenil de Kamubukwana, é uma das vítimas da espera sem fim. “No início, tínhamos apoio. Agora fomos abandonados. Vivemos no improviso. Somos 71 famílias aqui, com crianças pequenas, e há conflitos diários porque cada um tem a sua maneira de viver. Prometeram terrenos, mas poucos receberam. A mim deram-me um em Matutuine, mas está no meio do mato.”
Na mesma linha, Atália Matsinhe, mãe de quatro filhos e avó, denuncia a ausência prolongada de qualquer tipo de auxílio. “Há muito tempo que ninguém nos ajuda. Quando procuramos respostas, dizem que há crise. Temos que nos virar. Quem tem algum dinheiro saiu, mas nós, os pobres, ficámos aqui à espera do que nunca chega.”
Ana Maria (nome fictício) já passou por vários centros desde que a sua casa ruiu. “Fui para Kamubukwana, depois voltei para casa quando a água baixou. Mas em 2024 voltou a chover. A casa desabou. Agora estou na Escola Secundária Graça Machel. É insuportável. O barulho da escola, a falta de privacidade, todos a usar a mesma casa de banho. Os meus filhos estão sempre doentes.” Das 94 famílias inicialmente acolhidas nesse centro, só restam 32. As restantes dispersaram-se em condições improvisadas. “Os terrenos que nos deram em Matutuine são inóspitos, sem transporte, distantes. A bomba de drenagem foi instalada em 2023 e nunca funcionou. Ladrões já roubaram tudo nas casas que deixámos: chapas, portas, janelas. Ficou tudo vazio.”
Terrenos distantes, realidades insustentáveis
O INGD reconhece os atrasos e aponta o dedo à persistência das chuvas e à saturação dos solos. O ciclone Freddy despejou mais de 300 milímetros de precipitação sobre a cidade, agravando o alagamento de pelo menos em 14 bairros. Durante o pico da época chuvosa de 2024, Maputo contava com 31 centros de acolhimento. Hoje, ainda restam 12, entre os quais se destacam os localizados em Magoanine A: a Escola Graça Machel e o Centro Juvenil.
Segundo o INGD, algumas famílias foram reassentadas em Matutuine e Boane, em terrenos preparados com ruas, energia eléctrica e proximidade a paragens. No entanto, muitas recusaram-se a mudar, alegando isolamento, insegurança e falta de oportunidades. O Governo, por sua vez, garante que os locais foram avaliados por equipas técnicas, incluindo agências da ONU, e que oferecem condições mínimas para habitação. Ainda assim, reconhece que a resistência é natural entre quem está habituado a viver no centro urbano.
Enquanto o reassentamento definitivo não se concretiza, decorrem operações de drenagem, escavação de valas e bombeamento em zonas alagadas, a cargo do Conselho Municipal com o apoio do Executivo central. Contudo, para muitas famílias cujas casas se erguiam sobre o leito natural das lagoas, o retorno é praticamente impossível. A água subterrânea permanece teimosamente presente, desafiando todas as intervenções.
O Governo afirma que os centros de acolhimento continuam a ser monitorados com o envolvimento de secretários de bairro, ONGs e agências humanitárias, mas admite limitações orçamentais, sobretudo fora da época chuvosa. E, enquanto isso, centenas de pessoas permanecem esquecidas, presas num limbo que parece não ter fim.
Entre promessas de reassentamento, vazias de prazos e cheias de incerteza, famílias inteiras enfrentam diariamente o risco sanitário, a instabilidade social e a desintegração silenciosa das suas vidas. São cidadãos à espera de uma resposta que tarda, mas cuja urgência não pode continuar a ser ignorada. Porque viver em centros de acolhimento durante dois anos não é um “acolhimento”. É um abandono institucionalizado.