A crise de escassez de divisas que afecta Moçambique há mais de um ano ameaça sufocar a economia nacional, afectando directamente as importações, a produção e o quotidiano das famílias e empresas. Durante muito tempo, os sinais de alarme foram lançados pelo sector privado, que se viu impedido de aceder ao mercado formal de moeda estrangeira, enquanto o Banco de Moçambique, o regulador do sistema financeiro, recusava reconhecer a gravidade da situação. Hoje, porém, assiste-se a uma reviravolta curiosa, mas inquietante.
Num volte-face noticiado pela imprensa, o próprio Banco Central parece ter vindo confirmar uma suspeita que há meses corria nos bastidores: a escassez de divisas não será apenas reflexo de problemas estruturais ou conjunturais da economia, mas resultado de uma prática dolosa protagonizada por operadores bancários. Segundo esta nova narrativa, os bancos comerciais estariam deliberadamente a reter divisas para, posteriormente, as desviarem para o mercado paralelo, onde a moeda estrangeira é vendida a preços exorbitantes, em prejuízo do interesse público.
A gravidade desta denúncia é difícil de subestimar. Trata-se, em bom rigor, de um crime económico de larga escala, com contornos de sabotagem nacional, praticado por agentes autorizados a operar num sistema cuja regulação depende, directa e exclusivamente, do Banco de Moçambique. Se os bancos estão, de facto, a alimentar o mercado negro em prejuízo da economia formal, como é que o regulador admite a ocorrência e se abstém de intervir de forma contundente?
A postura passiva das autoridades, nomeadamente do Banco Central e do Governo, levanta sérias dúvidas sobre o compromisso institucional com a protecção da economia nacional. Mais do que uma questão técnica, trata-se aqui de um imperativo de soberania económica. Um país que não controla a circulação e a disponibilidade da sua moeda estrangeira, permitindo que agentes privados subvertam o sistema, está, na prática, a abdicar da sua autonomia financeira.
Não é aceitável que se identifique a origem do problema e que, ainda assim, não haja consequências palpáveis. A alegada manipulação cambial pelas instituições bancárias, se confirmada, representa uma violação flagrante das regras de mercado e do interesse colectivo, num momento em que milhares de moçambicanos sofrem com a inflação, a escassez de bens importados e a instabilidade do metical. A quem serve, afinal, este silêncio cúmplice?
O Governo, por via do Presidente da República, não pode limitar-se a diagnósticos públicos que, sendo verdadeiros, carecem de acções subsequentes. Apontar o dedo aos bancos comerciais é apenas o primeiro passo. O essencial seria a abertura imediata de investigações, a aplicação de sanções severas e a responsabilização dos gestores envolvidos. Não se pode permitir que o crime compense.
A ausência de acção não só fragiliza as instituições como transmite um sinal perigoso ao mercado: o de que é possível enriquecer ilicitamente, manipulando o sistema financeiro, sem que haja consequências legais. Este ambiente de impunidade mina a confiança dos cidadãos e dos investidores, corrói a ética empresarial e aprofunda as desigualdades sociais. É o próprio Estado que, ao não actuar, se transforma em refém dos seus regulados.
Adicionalmente, o fenómeno abre espaço para uma perigosa desinstitucionalização da economia. Se os operadores deixarem de confiar no sistema bancário formal para transacções cambiais e recorrerem cada vez mais ao mercado paralelo, estaremos perante um retrocesso grave. Voltar-se-á a uma economia subterrânea, não regulada, sem transparência, e onde prevalece a lei do mais forte — ou do mais corrupto.
É urgente, pois, que o Banco de Moçambique recupere a autoridade que lhe é conferida por lei. Isso implica auditar os bancos suspeitos, suspender licenças, impor coimas milionárias, e colaborar com o Ministério Público para levar os casos mais graves aos tribunais. Sem isso, a sua função de regulador não passará de uma figura decorativa num teatro onde os actores principais são os predadores da economia nacional.
Também o Governo deve assumir uma postura mais firme. O Estado não pode ser espectador num jogo em que está em causa o bem-estar da população e a saúde da economia. É imperioso um alinhamento institucional entre o Executivo, o Banco Central e o sistema judicial para travar este saque organizado. De outro modo, a retórica presidencial soará a mero populismo.
A escassez de divisas não é, portanto, apenas um problema técnico ou circunstancial. É um sintoma de falência institucional, de conivência, e de ausência de coragem política para enfrentar interesses poderosos. Continuar a ignorar a dimensão do problema é empurrar o país para uma crise ainda mais profunda, cujas consequências poderão ser irreversíveis.
Moçambique precisa, agora mais do que nunca, de instituições que funcionem, de líderes que actuem e de um sistema financeiro que sirva o interesse nacional. Saber quem está a cometer o crime e não punir é tão grave quanto cometêlo. A história não absolverá os que, podendo agir, escolheram o silêncio.