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MESMO DEPOIS DAS MANIFESTAÇÕES: “Justiça popular” ainda impera em Bobole

Oito meses depois de ter sido um dos palcos mais marcantes das manifestações que abalaram Moçambique no final de 2024 e início de 2025, Bobole, no distrito de Marracuene, província de Maputo, apresenta-se à primeira vista como um lugar calmo. As ruas voltaram a encher-se do movimento dos “chapas”, o comércio informal voltou a florescer nas bermas da estrada e os rostos dos transeuntes parecem já não carregar o mesmo ar tenso daqueles dias de confronto. Mas essa aparente normalidade esconde uma realidade profunda e complexa.

Texto: Milton Zunguze

Sob a superfície tranquila, instalou-se um sistema paralelo de ordem, nascido da ausência das forças policiais no quotidiano da comunidade. Desde as manifestações, a polícia raramente patrulha a zona, e a segurança passou a ser garantida pelos próprios moradores — um modelo de justiça popular que, para uns, representa protecção, mas para outros é um perigo constante.

“Se aparecer um ladrão, é morto pelo povo”, diz, sem hesitar, Argentina (nome fictício), residente no quarteirão 111. Ela improvisou uma banca no quintal, onde vende doces, pipocas e outros produtos, numa tentativa de manter algum rendimento familiar. “Aqui já sabemos: se acontece alguma coisa, é o povo que resolve. Patrulha, só lá no centro de Bobole. Quem tem o número deles, liga. Senão, tratamos nós.”

Este “tratamos nós” significa, muitas vezes, castigos sumários. Há relatos de ladrões capturados e levados “ao mar”, sem que se saiba o que acontece depois. É um tipo de justiça que vive na sombra, mas que molda o comportamento local, sustentada pelo medo, pela desconfiança e pela memória viva dos dias em que Bobole se fechou sobre si mesma e resistiu ao Estado, ganhando o título informal de “República Autónoma de Bobole”.

A vida económica não escapou à crise que se instalou após as manifestações. Argentina lamenta a ausência de controlo de preços e a “viciação” das medidas de peso em produtos básicos. “Cada pessoa vende ao preço que quer. Há quem diminua os quilogramas, e isso acontece até nas farmácias. Hoje dizem um preço, amanhã outro. Quem trabalha já não segue os preços dos patrões.”

Quanto à juventude, ela nota uma mudança significativa. Muitos dos jovens que lideraram os protestos já não vivem na zona. “Mesmo que haja manifestação na cidade, aqui já não há nada. Muitos foram contratados na fábrica de cerveja Heineken e estão a trabalhar. Eles tiveram os seus resultados”, comenta.

Noutra parte de Bobole, encontramos Teresa Macuácua, há anos vendedora de carvão no seu quintal. Com as mãos tingidas de negro e a voz firme, Teresa reconhece que a vida não voltou ao que era. “Os preços continuam a subir. Aqui um quilo de açúcar chega a 110 meticais, enquanto lá na estrada está a 95 ou 100. Antes das manifestações, os produtos já eram caros, e a destruição de armazéns só piorou.”

Sobre a segurança, Teresa confirma o que ouvimos antes: “Entre nós, controlamos. Se encontrarem um ladrão, levam-no ao mar. Depois, não sei o que acontece.”

Mas a sua maior amargura vem do desemprego e da frustração com o sistema de acesso a empregos. “Tenho saudades do tempo em que para trabalhar não se perguntava de quem eras filho ou se tinhas dinheiro. Hoje, para conseguir um emprego, tens de pagar. Tenho filhos formados que continuam sem trabalho. E é assim que alguns jovens começam a arrombar portas.”

A tensão latente mantém muitos em silêncio. Alguns recusam gravar entrevistas, outros falam medindo cada palavra. Uma jovem, que pediu anonimato, descreve o ambiente: “Há desconfiança, mesmo entre vizinhos. Uns dizem que foram traídos, outros acham que tudo foi em vão.”

Em Pessene, as urgências são outras

A cerca de 50 quilómetros dali, no posto administrativo de Pessene, distrito de Moamba, as preocupações têm outro rosto. Aqui, a luta diária não é contra a insegurança, mas contra a falta de infra-estruturas básicas.

A estrada que liga Moamba a Matola Gare é o pedido mais urgente. “Dependemos do comboio. Se não há, temos de pagar 120 meticais por dia para ir trabalhar na cidade. Uma estrada ajudaria a reduzir o sofrimento”, afirma um morador do quarteirão 4, enquanto se preparava para a recente visita do Presidente Daniel Chapo.

A água, ou a falta dela, é outro drama. “Há torneiras, mas a água não chega. Os que estão mais longe não têm nada. Mesmo os que estão perto, às vezes, não sai ou não tem pressão suficiente. Hoje muitos lavam roupa porque sabem que amanhã talvez já não haja água”, explica uma residente, num dia de abastecimento raro.

O campo da educação enfrenta obstáculos idênticos. Sem escola secundária próxima, as famílias são forçadas a suportar custos elevados com transportes. “A única escola secundária está em Tenga. Só para lá são 25 meticais. Imagina para quem tem quatro filhos”, queixase outra moradora, enquanto enchia recipientes de água com medo do próximo corte.

Entre Bobole e Pessene, o Presidente encontrou realidades distintas, mas com um ponto em comum: o sentimento de que o Estado está distante. Em Bobole, a ausência traduz-se na justiça popular que se impõe sobre as leis formais. Em Pessene, sente-se na poeira das estradas, nas torneiras secas e na falta de escolas. Dois rostos diferentes da mesma inquietação — a de populações que, por falta de respostas, constroem soluções próprias, à medida das suas urgências e da sua sobrevivência.

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