A rivalidade entre os Estados Unidos e a China, que há duas décadas parecia apenas uma disputa comercial, transformou-se hoje numa competição estrutural pela liderança económica global. Sob a superfície dos acordos e das tarifas, desenha-se um cenário em que Washington tem cada vez mais dificuldade em acompanhar a velocidade e a coerência estratégica de Pequim.
Texto: Amad Canda
De acordo com o “Times of India”, o economista norte-americano Paul Krugman foi peremptório ao afirmar que a China “já deixou a América para trás” em matéria de geração de electricidade — um indicador que, segundo ele, simboliza a supremacia tecnológica e industrial de Pequim. A China gera actualmente mais do dobro da electricidade produzida pelos Estados Unidos, sustentando o seu avanço em sectores de elevada intensidade energética como o aço, o alumínio e os semicondutores.
Krugman sublinha que as políticas energéticas de Donald Trump, ao favorecerem combustíveis fósseis e travarem o investimento em energias renováveis, “garantem que os Estados Unidos nunca conseguirão recuperar o atraso”. Esta disparidade energética, defende o economista, está a consolidar uma “nova divisão estrutural” na economia mundial, com a China a expandir-se como potência industrial e os EUA a perderem a sua capacidade de resposta.
Mas o domínio chinês não se limita ao sector energético. Num estudo académico recente, investigadores da Universidade de Xangai e da Universidade de Hamburgo demonstram que, mesmo após os choques provocados pela pandemia da Covid-19, pela guerra na Ucrânia e pelas sanções comerciais, a China continua a ocupar posições centrais nas cadeias globais de produção e abastecimento.
De acordo com o relatório publicado no arXiv, “as tentativas de reconfigurar as cadeias de valor globais para reduzir a dependência da China revelaramse insuficientes”, pois a estrutura de produção e distribuição mundial permanece alicerçada na eficiência e na escala industrial chinesa. Os autores acrescentam que a posição da China nas fases intermédias e avançadas das cadeias de valor — particularmente na produção de componentes electrónicos, maquinaria e produtos químicos — é agora “quase impossível de substituir”.
Enquanto isso, Pequim tem consolidado o controlo sobre matériasprimas estratégicas, elemento essencial para o domínio das tecnologias de ponta. A Reuters noticiou recentemente que a China impôs novas restrições à exportação de terras raras, minérios cruciais para a produção de chips, veículos eléctricos e sistemas de defesa
A decisão chinesa, apresentada oficialmente como uma medida de “gestão ambiental”, foi interpretada por analistas ocidentais como uma resposta directa às restrições impostas por Washington sobre semicondutores e equipamentos de inteligência artificial. “A China está a utilizar o controlo das matérias-primas como instrumento de influência económica e política, enquanto os Estados Unidos se debatem com limitações industriais internas”, escreve a agência.
No plano industrial, Pequim também não dá sinais de abrandamento. Um outro artigo da Reuters destaca que, mesmo com a pressão das sanções norte-americanas, a China “continuará a centrar-se na produção” como pilar da sua estratégia económica. A política chinesa mantém-se orientada para o fortalecimento das empresas estatais, o incentivo à inovação industrial e o aumento da autossuficiência tecnológica.
O Partido Comunista reafirmou, em recente reunião do seu Comité Central, que a prioridade é “produzir mais, produzir melhor e depender menos de importações”, numa clara alusão às restrições comerciais impostas por Washington. Essa determinação, segundo analistas citados pela agência, confirma a capacidade de Pequim para canalizar recursos financeiros e humanos em sectores estratégicos, mantendo o seu modelo de economia produtiva e planificada.
A situação cria uma ironia geopolítica: ao mesmo tempo que os Estados Unidos procuram “desacoplar” as suas economias, a interdependência tecnológica e comercial persiste, e as empresas americanas continuam a depender de fábricas e matérias-primas chinesas. Pequim, por seu turno, reforça o controlo sobre os fluxos de exportação e continua a expandir a sua influência económica em África, na América Latina e no Sudeste Asiático — territórios onde Washington tenta, sem grande sucesso, recuperar espaço.
Esta dinâmica foi descrita pela própria Reuters como “uma erosão gradual da primazia económica americana”, marcada por défices estruturais, envelhecimento industrial e perda de competitividade em sectores tecnológicos críticos.
No essencial, os Estados Unidos continuam poderosos, mas já não são incontestáveis. A China, com a sua combinação de planeamento estatal, investimento em inovação e diplomacia económica activa, avança com firmeza para consolidar-se como o novo centro da economia mundial — enquanto Washington luta para adaptar-se a um mundo que deixou de girar em torno de si.
Tiros nos pés
A guerra comercial lançada por Donald Trump contra a China continua a revelarse uma faca de dois gumes, sobretudo para a economia norte-americana. O dólar registou nova depreciação nos mercados internacionais, pressionado tanto pela retoma das tensões sinoamericanas como pelas expectativas de cortes nas taxas de juro por parte da Reserva Federal. A combinação de incerteza política e de volatilidade económica levou os investidores a procurarem refúgio em activos considerados mais seguros, fazendo com que moedas asiáticas e europeias ganhassem terreno face à divisa norteamericana.
A disputa tarifária entre as duas maiores economias do mundo reacendeu-se depois de Washington acusar Pequim de alargar os controlos sobre as exportações de metais raros, essenciais para sectores tecnológicos e industriais. Em resposta, o Ministério do Comércio da China classificou as críticas norte-americanas como “hipócritas”, lembrando que os Estados Unidos foram os primeiros a impor restrições severas a empresas chinesas. O episódio provocou nova pressão sobre o índice do dólar, que caiu 0,33% na semana, espelhando o nervosismo dos investidores e a perda de confiança no rumo da política económica de Trump.
Segundo Vasu Menon, estratega do OCBC, “a recente deterioração das relações comerciais volta a introduzir volatilidade cambial, e a expectativa de cortes na taxa directora da Fed reduz o atractivo relativo do dólar”. Essa leitura é partilhada por vários analistas, que sublinham que o próprio comportamento errático do antigo Presidente norteamericano contribuiu para minar a previsibilidade dos mercados e a credibilidade da moeda.
O movimento de fuga para activos de refúgio beneficiou o yen japonês, que chegou a tocar um máximo de uma semana em 150,51 por dólar, e o franco suíço, que valorizou para 0,7955 por dólar. O euro também se fortaleceu, atingindo 1,1661 dólares, impulsionado pela expectativa de estabilidade política em França. Já o yuan chinês alcançou o nível mais alto em duas semanas, depois de o Banco Popular da China fixar a taxa de câmbio diária mais forte em doze meses — um sinal de que Pequim pretende manter a estabilidade cambial, apesar das pressões externas.
A ironia é que a política proteccionista de Trump, desenhada para fortalecer a economia norte-americana e reduzir a dependência de produtos chineses, acabou por produzir o efeito inverso: enfraqueceu o dólar e gerou incerteza nos mercados globais. Economistas como Marcelo Kfoury, da Fundação Getúlio Vargas, recordam que “na verdade, é o dólar que está a depreciar”, e que tanto o euro como o real se valorizaram face à moeda norteamericana — reflexo de uma perda de confiança no padrão dólar.
Os números mostram que o dólar perdeu força em 24 das 27 maiores economias do planeta nos primeiros seis meses do governo Trump. O fenómeno é atribuído à instabilidade provocada pela sua gestão económica, caracterizada por decisões imprevisíveis e declarações contraditórias sobre tarifas e políticas fiscais. “Risco eu aloco probabilidades. Incerteza, não”, explica o economista Roberto Dumas, do Insper. “Quando um Presidente anuncia uma tarifa de 20%, depois sobe para 100%, desce para 10% e volta para 30%, o empresário pára o seu plano de negócios e diz: não sei o que vai acontecer. Isso paralisa o investimento.”
O resultado é um paradoxo: a guerra tarifária concebida para proteger a economia dos Estados Unidos acabou por fragilizar o seu próprio sistema cambial, afastar capitais e reduzir o prestígio da moeda que durante décadas foi o símbolo incontestado da estabilidade financeira mundial.
Trump promete agora reverter esse quadro, mas as bases estruturais da economia global mudaram. A China, com uma moeda cada vez mais estável e um sector produtivo em expansão, tornouse a âncora de confiança num tempo em que o dólar já não é, como outrora, o centro do universo económico.


