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SEGUNDO JORGE FERRÃO: “Álcool e drogas são fogo que queima silenciosamente sonhos”

“Há um provérbio africano que diz que toda aquela criança que não é abraçada pela aldeia, um dia voltará e vai queimar a aldeia para sentir o seu calor. Nós estamos aqui porque sentimos o frio desse fogo.” Foi com esta imagem poderosa que o Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo, Jorge Ferrão, iniciou a sua intervenção na Primeira Conferência Provincial de Educação sobre o Consumo de Álcool e Drogas por Alunos, realizada na quartafeira, 15 de Outubro, no Distrito de Boane. Para Ferrão, “o fogo do álcool e das drogas está silenciosamente a queimar os sonhos de muitos jovens a nível de todo o País”. O académico, que fez a Conferência de Abertura do evento, alertou que as bebidas semi-artesanais comercializadas a preços baixos tornaram-se as mais consumidas por alunos uniformizados nas proximidades das escolas, representando um perigo crescente para o futuro das novas gerações.

Texto: Anastácio Chirrute

Segundo o reitor, “as drogas entram nos estabelecimentos de ensino sem pedir licença, entram pelas famílias de forma dramática, sentam-se muitas vezes, de forma invisível, ao lado do aluno, e aguardam pelo momento certo para poderem actuar”. Esta metáfora vívida ilustra a forma insidiosa como estas substâncias penetram no tecido social e escolar, corroendo valores e destruindo potencial humano.

Ferrão foi peremptório ao afirmar que este fenómeno resulta da “perda de muitos dos valores morais” na família e na sociedade. “Desaparecem na família ou na sociedade por vezes com exemplos que são dados por quem está muito por cima de nós em termos de poder”, sublinhou, acrescentando que “faz muito tempo que o sistema americano tem lutado com estes desafios e não temos encontrado o antíduto, as formas nem de discutir o problema nem para alterar o curso”.

O reitor defendeu que a solução passa necessariamente por melhorar todo o sistema educativo, incluindo o pagamento de horas extras aos professores. “Faltam salas de aula, faltam professores”, enumerou, apontando para as desigualdades entre escolas privadas e públicas. “Os professores do país que temos formados depois permitimos que eles criem uma desigualdade dentro do sistema, entre a escola privada, que praticamente tem tudo, e a escola pública, que não tem nada. Até o próprio salário dos professores falta e agora venho acompanhando que também falta dinheiro para pagar horas extras.”

O momento crítico: a hora do intervalo              

O académico chamou ainda a atenção para o momento do intervalo escolar, que deveria ser de descontracção, mas que se tem transformado numa oportunidade para o consumo. “Quando o aluno já sai cansado da aula, ele está preparado para receber uma nova motivação. E é o momento da fraqueza. Depois nós temos os relatos de alunos que já não se concentram para as aulas. Há muito tempo que sabemos que chegam muitos alunos embriagados à escola.

Ferrão concluiu com uma reflexão profunda: “Escrevi aqui o meu texto. Porque o álcool e as drogas não são apenas substâncias químicas? Elas são os sintomas, e um mal maior.” Esta perspectiva sugere que o problema do consumo é apenas a ponta visível de um iceberg de questões sociais e emocionais não resolvidas.

Henriques Bongece revela números alarmantes e apela à acção

Henriques Bongece, secretário de Estado na Província de Maputo, elogiou a iniciativa do Externato Ideias Válidas e da ST Projectos & Comunicação, destacando que o evento marca “o passo zero” de um movimento que deverá ser replicado em todas as escolas da província. “Quando uma escola decide agir, nasce a esperança de um Moçambique melhor”, afirmou o governante.

Bongece revelou números alarmantes que pintam um quadro preocupante da situação: “Desde o primeiro trimestre de 2025 a esta parte, as unidades sanitárias da província de Maputo atenderam cerca de 268 pacientes sob efeito de substâncias nocivas”, e no mesmo período “foram apreendidos 244 mil gramas de suruma”, com destaque para o distrito de Matutuíne.

“Precisamos substituir as machambas de suruma por machambas de milho, arroz e gergelim”, afirmou Bongece, propondo uma solução económica alternativa para o problema. O secretário de Estado defendeu que “a escola não é a origem do problema, mas pode e deve ser parte essencial da solução”, apelando aos professores para educarem os alunos sobre os perigos do consumo precoce de drogas e álcool.

“Se começarmos a ensinar desde cedo que fumar e beber não é bom, daqui a 18 anos teremos jovens comportados”, afirmou Bongece, sublinhando a importância da prevenção precoce e da educação continuada.

Gabinete de Combate à Droga identifica distritos críticos e estratégias

Lídia Julieta Matuque, directora provincial do Gabinete do Combate à Droga em Maputo, apresentou dados concretos sobre a situação: mais de 290 pessoas toxodependentes foram submetidas a tratamento, das quais apenas 99 recuperaram completamente do vício. “Dos oito distritos, o distrito mais crítico é o distrito da Matola, por ser a grande superfície. As drogas algumas passam por lá e outras ficam e depois são comercializadas nas escolas e nos bairros”, explicou Matuque.

Matutuine e Namaacha, este último por fazer fronteira com a Eswatine, são identificados como os distritos que mais produzem e comercializam drogas, sendo também “os distritos com maior número de detidos pelo seu envolvimento na prática deste tipo de crime”.

A delegada sublinhou que “o que está a falhar é o envolvimento dos próprios pais”, defendendo que a prevenção deve começar em casa e na comunidade. “Se nós não conversamos, não há comunicação dentro de casa, a criança vai aprender de primeira forma lá fora. Então primeiro tem que começar dentro de casa, na comunidade, depois é que nós podemos complementar na escola.”

 Para mitigar este mal, Matuque garantiu que a sua instituição tem estado a “revitalizar e capacitar núcleos, redimensionando-os para que possam fazer grande abrangência em termos de população e permitir que tenham acesso a informações”. Através de palestras e monitoria das acções realizadas, o Gabinete procura criar uma rede de prevenção mais eficaz.

“Eu venci o vício”: O testemunho de Mário Nhatumbo

“Eu estava perdido. O álcool e as drogas tomaram conta da minha vida. Perdi amigos, familiares e quase perdi a mim mesmo.” O depoimento de Mário Nhatumbo, de 27 anos, emocionou os participantes da conferência, revelando a face humana por trás das estatísticas.

Mário contou como se envolveu no mundo das drogas por “má influência dos amigos” com quem frequentava as aulas. “No início, o que parecia ser uma simples diversão, mais tarde transformou-se em vício”, recordou, descrevendo como chegou a roubar dinheiro dos pais para comprar suruma e consumir na companhia dos amigos durante os intervalos escolares. “Perdi a conta das vezes que fui obrigado a roubar dinheiro dos meus pais”, confessou, mostrando como o vício o levou a transgredir valores fundamentais.

O despertar e a jornada de recuperação

“Um dia, eu acordei e percebi que não era isso que eu queria para a minha vida.” Foi este momento de lucidez, este clicar de consciência, que levou Mário a procurar ajuda na AGADIA, uma associação dedicada à reabilitação de pessoas toxodependentes.

“Foi difícil, mas sabia que tinha que fazer isso para poder salvar a minha vida e voltar a sonhar de novo, mas muito longe das drogas”, confessou o jovem, descrevendo os desafios do processo de desintoxicação e recuperação.

Uma nova vida cheia de propósito

Hoje, Mário é um exemplo vivo de superação. Contratado como jardineiro pela associação que o ajudou, tornou-se também um artesão profissional, transformando simples troncos de árvore em obras de arte. Esta dupla ocupação não só lhe garante sustento, mas também funciona como terapia ocupacional, mantendo-o focado na sua recuperação.

“Eu quero mostrar que é possível vencer o vício. Não é fácil, mas é possível. Se eu pude, você também pode”, disse, dirigindo-se directamente aos jovens presentes na conferência, numa mensagem de esperança e encorajamento.

Associação enfrenta batalha contra recursos limitados

Paulina Matacuana, presidente da AGADIA, revelou que a associação recebe em média “6 a 10 pacientes por mês”, mas enfrenta sérias dificuldades financeiras que limitam severamente a sua capacidade de resposta. “Temos recebido mais de 200 chamadas de diferentes províncias do país pedindo ajuda para internar seus filhos toxodependentes, mas a falta de condições financeiras tem sido uma das principais barreiras”, explicou.

A situação é particularmente preocupante porque, como detalhou Matacuana, “são pacientes cujos familiares ajudam com poucos recursos que tem para os manter internados naquele centro, porque neste momento a instituição ainda enfrenta algumas dificuldades de ordem financeira, falta quase um pouco de tudo incluindo alimentação”.

A associação recomenda que os pacientes fiquem internados pelo menos um ano para uma recuperação efectiva, embora alguns casos possam ter alta em oito meses. “Há casos que também em 8 meses podemos dar alta e podemos considerar isso um grande milagre ver um jovem que tem apenas um pulmão e conseguir superar”, observou a presidente da AGADIA.

Factores de risco e sinais de alerta

Matacuana identificou vários factores que influenciam os jovens a consumirem álcool e drogas: “O stress e ansiedade, baixa autoestima aliados a problemas emocionais e ambientes familiar e escolar são entre vários factores”. Estes elementos combinados criam um terreno fértil para o desenvolvimento de dependências.

A presidente da AGADIA fez ainda um alerta importante às famílias: “A maior parte dos nossos pacientes as famílias trazem enquanto estão no estado muito grave e nunca trazem logo no inicio porque pensam que ainda conseguem controlar a situação dos filhos, o que não devia ser assim”. Esta observação salienta a importância da intervenção precoce e do reconhecimento dos primeiros sinais de problema.

Um farol de esperança no meio da tempestade

A história de Mário Nhatumbo serve como prova viva de que, mesmo quando o fogo do álcool e das drogas ameaça consumir todos os sonhos, a esperança da recuperação permanece acesa. O seu percurso da dependência para a recuperação e, finalmente, para se tornar num agente de mudança positiva para outros jovens, ilustra o potencial de transformação que existe quando são oferecidos os apoios adequados.

A conferência, que contou com a presença de diversas figuras incluindo membros do governo, líderes comunitários e religiosos, académicos, alunos de diferentes escolas secundárias do ensino geral e sociedade civil, representou um passo importante no sentido de construir uma frente comum contra este flagelo que silenciosamente continua a queimar os sonhos da juventude moçambicana.

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