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EDITORIAL D&F: Ventos de mudança na África Austral

Há sinais cada vez mais nítidos de que os ventos de mudança começaram a soprar com força sobre a África Austral. São ventos que não surgem do nada, mas de décadas de frustrações acumuladas, de promessas adiadas e de uma juventude que, mais informada e menos reverente, começa a desafiar o status quo político herdado dos tempos de libertação. O que as urnas mostram, com clareza crescente, é que a paciência dos povos da região com os partidos libertadores chegou a um ponto de saturação.

Em Angola, o MPLA venceu as últimas eleições presidenciais por uma margem mínima — quase tangencial. Foi uma vitória formal, mas politicamente magra, que expôs o desgaste de um partido que, durante décadas, monopolizou o poder e o imaginário nacional. A capital, Luanda, e várias cidades do país, votaram maioritariamente na oposição, num claro recado de cansaço e desconfiança. A geração pós-guerra, que não viveu o trauma da luta armada, já não se deixa comover por slogans libertários: quer resultados concretos, quer oportunidades e justiça social.

Na África do Sul, o ANC, outrora símbolo mundial de resistência contra o apartheid, viuse forçado, pela primeira vez na história, a formar um Governo de Unidade Nacional. A hegemonia política do partido de Nelson Mandela foi abalada por uma sucessão de escândalos de corrupção, desemprego estrutural e um colapso progressivo dos serviços públicos. O eleitorado sul-africano, cansado da retórica da libertação, optou por diversificar o poder, num gesto maduro que sinaliza a consolidação democrática, ainda que revele também um profundo desencanto com o presente.

O Botswana, considerado durante muito tempo um modelo de estabilidade, viveu igualmente um abalo político sem precedentes. O partido libertador perdeu o poder pela primeira vez desde a independência. A alternância política chegou, pacificamente, como resultado de um desejo colectivo de renovação. O eleitor tswana mostrou que é possível mudar o curso da história sem rupturas violentas, apenas com a força do voto consciente.

Em Moçambique, a vitória “expressiva” da Frelimo nas eleições de 2024 foi celebrada oficialmente, mas dificilmente convenceu a todos. O movimento de contestação popular que tomou as ruas entre Outubro de 2024 e Março de 2025 revelou um descontentamento profundo e transversal. Jovens, trabalhadores, académicos e religiosos uniram-se na denúncia do que consideram ser um sistema eleitoral viciado, incapaz de traduzir a verdadeira vontade do povo. As imagens de protestos e repressão trouxeram à memória outros momentos sombrios da história política moçambicana e lançaram sérias dúvidas sobre a credibilidade dos números divulgados pelos órgãos de gestão eleitoral.

Na Tanzânia, a história voltou a repetir-se. A presidente Samia Suluhu Hassan concorreu praticamente sem oposição, numa eleição que, embora legalmente válida, levantou interrogações sobre o pluralismo e a vitalidade democrática do país. O aparente consenso, nestes contextos, é mais sintoma de fragilidade do que de força — uma democracia sem alternativas é, em si mesma, uma contradição.

Perante este quadro regional, torna-se cada vez mais difícil sustentar a narrativa de que o descontentamento popular é fruto de “mão externa” ou de campanhas de desestabilização promovidas por forças invisíveis. Essa explicação, repetida como refúgio pelos aparelhos partidários, já não convence ninguém. Os povos da África Austral não votam por influência estrangeira, votam porque sentem, no quotidiano, o peso da má governação, da corrupção endémica e da desigualdade que se alarga a cada dia.

O que está em curso é um despertar colectivo, uma tomada de consciência de que os heróis de ontem se transformaram, em muitos casos, em oligarquias distantes das realidades que dizem representar. O culto à história de libertação deixou de ser suficiente para legitimar o poder. A retórica dos “pais da independência” esbate-se perante o desemprego juvenil, os hospitais degradados e a pobreza que teima em resistir, mesmo em países ricos em recursos naturais.

A democracia, tal como o povo a entende, já não se mede pelo número de discursos patrióticos, mas pela capacidade dos governantes de assegurar dignidade e oportunidades. É esse o novo voto de confiança que as populações exigem: menos promessas, mais resultados. As urnas têm-se tornado o espelho dessa exigência moral.

Reconquistar o coração do povo africano não passa por campanhas de propaganda, slogans ou manipulação mediática. Passa, antes, por resolver os problemas estruturais que corroem a confiança: combater a corrupção, garantir transparência, criar empregos, melhorar os serviços públicos e assegurar justiça social. Só assim se pode reatar o vínculo entre governantes e governados, hoje profundamente abalado.

Os “ventos de mudança” que percorrem a região não são uma ameaça, mas uma oportunidade — a oportunidade de reconfigurar o contrato social, de transformar a política em serviço e não em privilégio. A alternância, quando pacífica e democrática, é sinal de maturidade, não de traição à história.

Os partidos libertadores que continuam no poder precisam de compreender que o tempo da lealdade incondicional terminou. A legitimidade não é eterna; é um compromisso que se renova a cada eleição, com base em resultados e ética. O povo, finalmente, começa a perceber que a liberdade política não é um presente, mas um direito que se defende todos os dias.

Em suma, a África Austral vive um momento de transição histórica. As urnas tornaram-se o novo campo de batalha onde se confrontam passado e futuro. E, ao contrário das armas, o voto não destrói — constrói. O sopro desses ventos de mudança poderá ser, se bem aproveitado, o início de uma nova era de maturidade política e de esperança renovada no continente.

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