– “O Estado é quem concede as licenças e os alvarás de produção, mas precisa de melhorar a sua capacidade técnica”, acrescenta o economista
Moçambique encontra-se no centro de uma disputa fiscal com a petrolífera portuguesa Galp, num processo que, segundo analistas, vai muito além das contas e dos impostos: está em causa a afirmação da soberania económica do País face às grandes multinacionais do sector energético. Em causa está o imposto sobre as mais valias decorrentes da venda da participação da Galp na Área 4 da Bacia do Rovuma.
Texto: Milton Zunguze
A Galp confirmou o início de um processo de arbitragem internacional contra o Estado moçambicano, após desacordos relacionados com o imposto sobre ganhos de capital na venda de 10% da sua participação na Área 4 da Bacia do Rovuma. Num comunicado à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), a empresa portuguesa garantiu ter procurado “resolver o caso por via do diálogo construtivo”, mas optou por accionar o mecanismo de arbitragem “para avaliar a conduta do Estado moçambicano em relação ao litígio fiscal”.
O diferendo prende-se com a forma como o Estado calcula o imposto sobre mais-valias — um tributo que incide sobre os lucros obtidos na venda de activos, especialmente nos sectores de petróleo e gás. O Governo moçambicano entende que a Galp deve pagar 12 mil milhões de meticais (cerca de 162 milhões de euros), enquanto a empresa defende que o valor é “indevido e desproporcional”.
Em entrevista ao Dossier Económico, o economista Firmino Chirrime considera que a questão ultrapassa a dimensão fiscal e revela, antes, as fragilidades estruturais de Moçambique nas negociações com grandes corporações internacionais. “Trata-se de um conflito previsível num contexto de soberania fiscal. Moçambique é um Estado soberano e deve impor-se. O Estado está a exigir o cumprimento da lei, e a lei é clara. Contudo, há fragilidades contratuais herdadas do modo como esses acordos foram constituídos”, explicou Chirrime.
O economista recorda que as multinacionais tendem a aproveitar-se da debilidade institucional e técnica dos países em desenvolvimento. “Partimos sempre em desvantagem. Quem faz os estudos sísmicos, as medições e as avaliações são as empresas estrangeiras. O Estado limita-se a receber os resultados. Falta-nos capacidade técnica instalada para acompanhar todo o processo”, lamentou.
Para o analista, o caso Galp deve servir de lição estratégica. “Precisamos de fortalecer as nossas instituições e desenvolver competências nacionais em matérias de prospecção, análise e regulação. O Estado é quem concede as licenças e os alvarás de produção; portanto, deve ter meios técnicos para avaliar, fiscalizar e impor as suas decisões.”
Chirrime sublinha que a lei moçambicana dá razão ao Estado e que o País não pode ceder perante pressões externas. “As normas favorecem o Estado moçambicano. Não pode favorecer uma empresa que, em termos escrupulosos, não cumpriu as cláusulas fiscais. O Estado pede apenas aquilo que é de direito.”
O economista nota ainda que esta não é a primeira vez que Moçambique enfrenta grandes investidores em disputas fiscais ou contratuais, recordando os casos da Mozal e da TotalEnergies. “Essas empresas sabem que o País tem vulnerabilidades e exploram-nas. Mas o Estado deve impor-se — acima do negócio está a nação, e acima da nação está o dever de proteger os interesses do povo.”
Para além do litígio, o episódio revela um desafio mais profundo: o da autonomia económica. “Devemos estabelecer novos parâmetros fiscais e garantir uma gestão transparente das receitas. Os recursos são nossos, e devem gerar riqueza interna. É preciso criar instituições fortes que possam negociar e fiscalizar de igual para igual com os grandes actores internacionais”, defendeu Chirrime.
Um teste à soberania
O Centro de Integridade Pública (CIP) partilha dessa visão. Em nota pública, a organização afirma que o caso “testa a soberania económica de Moçambique e a responsabilidade de um dos maiores investidores estrangeiros no País”. O CIP recorda que, apesar de contestar a cobrança, a Galp reportou aos seus accionistas um ganho contabilístico de 147 milhões de euros na mesma transacção, “evidenciando uma gritante inconsistência entre o que declara ao fisco e o que comunica aos investidores”.
Para o CIP, recorrer à arbitragem internacional no ICSID, do Banco Mundial, representa uma táctica de desgaste para forçar o Estado a aceitar um acordo menos favorável, explorando a assimetria financeira entre as partes. “Os custos legais do processo podem chegar a oito milhões de dólares, o que equivale a cerca de 4,6% do valor total do imposto exigido”, lê-se no relatório.
Entretanto, o Governo moçambicano mantém um discurso de serenidade
O porta-voz do Conselho de Ministros, Inocêncio Impissa, assegura que a posição da Galp é “normal” e que o Executivo apenas defende os interesses do País. “O que se tem que garantir é que Moçambique tire todos os benefícios a que tem direito em qualquer projecto de exploração de recursos que são dos moçambicanos”, afirmou.
Impissa salientou que o processo de arbitragem deve ser visto como um instrumento legítimo de resolução de divergências, e não como um conflito político. “Ir à arbitragem é apenas mais um fórum para discutir direitos. É uma prerrogativa que assiste tanto ao Estado como à empresa.”
O desfecho deste caso poderá definir até onde vai a capacidade de Moçambique em afirmar a sua soberania económica num sector estratégico e dominado por interesses globais. Como conclui o economista Firmino Chirrime, “este deve ser o ponto de viragem: Moçambique precisa de se impor, de aprender e de criar a sua própria força. Só assim os nossos recursos deixarão de ser uma bênção distante e passarão a ser uma riqueza nacional efectiva.”




