Enquanto milhões de meticais são hipotecados todos os anos na construção de estradas, hospitais e escolas, Moçambique continua a exibir um retracto preocupante: obras com prazos arrastados, qualidade duvidosa e abandono completo. Adjudicações viciadas, sobrefacturação, ausência de fiscalização e conflitos de interesse tornaram-se entraves invisíveis, mas profundamente reais, ao bem-estar dos cidadãos. A grande questão persiste: onde estão as infra-estruturas prometidas — e quem responde por elas?
Texto: Hélio de Carlos
O País enfrenta um défice grave em infra-estruturas públicas, comprometendo o crescimento económico e social. O sector rodoviário, por exemplo, apresenta um défice anual de cerca de 37 mil milhões de meticais apenas para concluir e manter estradas primárias e secundárias. Contudo, o Estado disponibiliza menos de metade desse valor — cerca de 16 mil milhões de meticais.
De acordo com dados governamentais de 2025, mais de 226 infra-estruturas públicas, entre escolas, postos de saúde e edifícios administrativos, ficaram destruídas ou danificadas em sete províncias, resultado de ciclones, manifestações recentes e abandono estrutural.
Em paralelo, a percepção de corrupção no sector público mantém-se elevada. Só entre Janeiro e Outubro de 2024, a província de Maputo registou 81 processos de corrupção, muitos deles directamente ligados a obras públicas e adjudicações irregulares.
Corrupção e má execução: o dinheiro perde-se antes de chegar ao destino
O problema não se resume à escassez de recursos: reside também na má governação. Obras atrasadas, mal executadas ou simplesmente não entregues são o reflexo de um sistema permeável à corrupção e à impunidade.
O empresário Bento Machaíla, presidente da Federação dos Empreiteiros de Moçambique, explica que o desequilíbrio começa na base: “Há empresas estrangeiras que se registam em Moçambique com documentação aparentemente em ordem, mas sem capacidade técnica real. Mesmo assim, ganham concursos e afastam empreiteiras nacionais competentes”, denuncia.
Segundo o Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC), só nos primeiros três meses de 2025, foram desviados mais de 258 milhões de meticais, sobretudo em contratos públicos.
Conflitos de interesse e captura institucional
Uma investigação independente revelou que altos dirigentes do sector das Obras Públicas detinham participações em empresas de construção, o que configura claro conflito de interesses à luz da Lei da Probidade Pública. Quando interesses privados se sobrepõem ao interesse colectivo, toda a cadeia — da concepção à entrega da obra — é contaminada. O resultado são infra-estruturas frágeis, mal fiscalizadas e incapazes de resistir às intempéries, como se viu em vários pontos do País.
Fiscalização deficiente e contratos sob suspeita
Em Junho de 2025, o Governo suspendeu diversos contratos de obras públicas para revisão de procedimentos. Um dos casos mais emblemáticos envolve a empresa Chico, S.A., que recebeu 2,3 mil milhões de meticais para reabilitar 50 km da EN 301. A adjudicação foi travada pela Direcção-Geral do Património do Estado por “irregularidades graves nos processos de contratação”.
Outro exemplo é a ponte sobre o rio Licungo, na Zambézia, inaugurada em 2022 e que ruiu parcialmente poucos meses depois. Técnicos atribuíram o colapso à falta de rigor técnico e a práticas corruptas durante a execução. Estes casos não são excepção: traduzem um padrão sistémico em que grandes somas são investidas, mas o controlo é débil e os resultados, insatisfatórios ou inexistentes.
Quando o preço da corrupção recai sobre o cidadão
Cada escola que não se ergue, cada hospital inacabado ou ponte que desaba tem consequências directas no quotidiano das comunidades. A dona de casa que esperava um centro de saúde no bairro, o agricultor que precisa de uma estrada para escoar a colheita, o aluno que continua a estudar ao ar livre — todos são vítimas silenciosas de um sistema que falha em garantir o básico.
Apesar de o Regulamento de Contratação de Empreitada de Obras Públicas (RCEOP) prever mecanismos de controlo e responsabilização, as irregularidades persistem. Documentos são falsificados, a capacidade técnica raramente é verificada e o acompanhamento pós-execução é fraco ou inexistente.
Um sistema que acumula processos e poucos resultados
A responsabilização administrativa, civil ou criminal continua ineficaz. Os processos acumulam-se, mas as sanções raramente são aplicadas. O investimento em infra-estruturas per capita mantém-se baixo, e os encargos financeiros são altos. A diferença entre o que o Estado planeia e o que efectivamente entrega abre brechas para práticas informais e opacas.
Propostas para inverter o cenário
Especialistas defendem transparência total nas adjudicações, com publicação integral de contratos e acompanhamento público em tempo real. É igualmente essencial reforçar a capacidade técnica dos empreiteiros nacionais, permitindo-lhes concorrer em igualdade de condições e garantindo qualidade de execução.
Outra medida apontada é a criação de mecanismos independentes de fiscalização com auditores externos, autonomia funcional e sanções efectivas. Os contratos devem incluir garantias técnicas, revisões periódicas e penalidades rigorosas por defeitos de execução.
Por fim, as comunidades locais — principais beneficiárias das obras — devem ter voz activa no processo de planeamento, monitoria e entrega das infraestruturas.
Obras emblemáticas e fracassos repetidos
A Estrada Nacional 301, na província de Tete, é um exemplo simbólico: a ponte inaugurada há menos de dois anos sofreu danos graves durante as cheias, devido a falhas técnicas e ausência de estudos hidráulicos adequados. A ponte sobre o rio Rovubwé, também em Tete, reabilitada após o ciclone Idai com um custo de 200 milhões de meticais, voltou a apresentar falhas estruturais e foi encerrada ao trânsito.
Mais de 800 obras públicas permanecem abandonadas em todo o País. Dados oficiais de 2018 indicam que centenas de projectos foram deixados a meio, apesar de o Estado ter efectuado pagamentos significativos. Em todos os casos, o padrão repete-se: adjudicações duvidosas, falta de seguimento, ausência de responsabilização e prejuízos directos para as populações.
Quando o Estado perde e o cidadão paga
A não conclusão — ou a má qualidade — das infraestruturas públicas traz consequências devastadoras. As comunidades ficam privadas de serviços essenciais, o Estado perde recursos valiosos e a confiança institucional é abalada. Sem reformas profundas nos sistemas de contratação, fiscalização e responsabilização, o dinheiro público continuará a “desaparecer” entre promessas e estaleiros abandonados. E o cidadão continuará à espera da escola, da estrada ou da ponte que nunca chega




