Atrasos prolongados no pagamento de salários, resistência dos cidadãos ao pagamento de impostos e fundos centrais que chegam tarde ou simplesmente. Esta é a equação que está a empurrar vários municípios do País para uma situação de colapso funcional. De Chibuto à Nampula, as evidências da insustentabilidade são abundantes e, se calhar, deviam convocar uma reflexão sobre o actual modelo de descentralização.
Texto: Maidone Capamba
Moçambique vive um período de acentuada fragilidade financeira ao nível das autarquias locais. Apesar de desempenharem responsabilidades crescentes, desde a gestão urbana até à provisão de serviços básicos, a esmagadora maioria dos municípios continua estruturalmente incapaz de gerar receitas próprias que cubram o mínimo das suas despesas correntes. A sustentabilidade financeira, que seguramente estava em perspectiva aquando da institucionalização do poder local, em 1998, parece estar fora do alcance.
Entre as causas mais apontadas pelos próprios municípios e pelos funcionários está a resistência generalizada dos cidadãos e agentes económicos ao pagamento de impostos e taxas municipais, fenómeno que reduz drasticamente a capacidade de arrecadação das edilidades. Em segundo lugar, os atrasos, por vezes prolongados por vários meses, na canalização do Fundo de Compensação Autárquica (FCA), o principal mecanismo de apoio do Governo Central, geram um efeito dominó que afecta salários, serviços e investimentos.
A conjugação destes factores produziu um cenário que hoje atravessa municípios de quase todas as categorias, desde os mais pequenos e economicamente frágeis (nível E) até cidades de grande dimensão e peso económico (nível B). De sul a norte, multiplicam-se relatos de salários em atraso, serviços paralisados e autarcas incapazes de cobrir sequer as despesas básicas de funcionamento.
Chibuto: seis meses sem salários e funcionários à beira da paralisação
Na província de Gaza, a cidade de Chibuto, que é um município de nível D, é um dos casos mais dramáticos desta crise. Com cerca de 72 mil habitantes, a autarquia admite que não dispõe de receitas para pagar salários há mais de seis meses, afectando mais de 200 funcionários.
Entre os quadros da instituição, o ambiente prevalecente é de exaustão e indignação. Um trabalhador descreve a situação como “tamanha humilhação”, afirmando que estão há meses à espera dos seus salários, sem qualquer perspectiva de resolução. Outro funcionário relata ter recorrido a agiotas para sobreviver ao longo período sem rendimentos, acumulando já uma dívida de 45 mil meticais, enquanto vive sob constante pressão e ameaças. Há ainda casos de famílias que já não conseguem sustentar a educação das crianças, o que revela um impacto social profundo.
Quando confrontado com estas queixas, o presidente do Conselho Municipal, Henriques Machava, aponta duas razões centrais para o incumprimento, nomeadamente a drástica redução das receitas próprias e os atrasos na canalização do FCA. Segundo o autarca, antes das manifestações registadas no ano passado, o município colectava cerca de 500 mil meticais mensais, mas actualmente não alcança sequer 100 mil.
De acordo com Machava, como consequência do ambiente de desobediência civil instalado pelas manifestações pós-eleitorais, muitos comerciantes continuam a recusar o pagamento de taxas municipais comprometendo sobremaneira a sobrevivência da autarquia.
Manjacaze na mesma onda já lá se vão quatro meses
A crise não é exclusiva da cidade de Chibuto. Na vila de Manjacaze, igualmente município desde 1998 e classificado como nível E, os trabalhadores estão há quatro meses sem salários. A situação, embora menos exposta mediaticamente, é semelhante em gravidade. A falta de receitas próprias suficientes, aliada à dependência quase total do financiamento central, tem gerado atrasos recorrentes e tensões entre funcionários e gestão municipal.
O Município, parte de um distrito do mesmo nome com mais de 200 mil habitantes, enfrenta o desafio adicional de servir uma população ampla e dispersa, numa economia local dominada pela agricultura de subsistência, com fraca capacidade de geração de receitas tributáveis.
Namaacha: a insustentabilidade crónica de um município sem base económica
Mais a sul do País, na província de Maputo, localizase o Município de Namaacha (nível E). Criado em 2009, este Município constitui um dos exemplos mais persistentes de insustentabilidade estrutural. Os atrasos salariais acumulam-se há anos. O anterior edil, Manuel Elias Munguambe, fechou o mandato daevendo cinco meses de salário aos funcionários. O actual presidente, Paulo Chitiva, não só herdou esta dívida como acrescentou novos atrasos, totalizando actualmente seis meses por pagar.
Dados recolhidos pela nossa equipa de reportagem em 2023 – poderão estar ligeiramente desactualizados, mas ainda são válidos para ilustrar a realidade – revelam uma estrutura financeira desequilibrada. As receitas próprias da edilidade, provenientes de taxas e impostos, rondavam apenas 300 mil meticais por mês. A empresa municipal de transportes conseguia arrecadar cerca de 1,1 milhão de meticais. A isto somavase o FCA, fixado em 3,48 milhões de meticais anuais. No entanto, as despesas superavam largamente estes valores. Só a folha salarial absorvia 1,4 milhão de meticais mensais, para além de outros 300 mil destinados ao pessoal que trabalhava ainda sem visto do Tribunal Administrativo.
Em síntese, Namaacha gasta mensalmente quase o dobro do que consegue arrecadar. A dependência do FCA é absoluta e insuficiente. A edilidade, com pouco mais de 100 funcionários, continua presa a um ciclo de endividamento e atrasos, incapaz de financiar as suas funções básicas. O problema central da insustentabilidade económica naquela vila fronteiriça permanece intacto, independentemente da mudança de edis ou de reorganizações administrativas.
Capitais também sofrem
A crise municipal não afecta apenas as autarquias economicamente frágeis. Em Maio deste ano, Quelimane, capital da Zambézia e município de nível B, com cerca de 400 mil habitantes, viu os seus trabalhadores desencadearem uma greve para exigir o pagamento de cinco meses de salários em atraso.
O facto de uma cidade deste porte enfrentar dificuldades salariais demonstra que o problema não reside apenas na dimensão populacional ou económica das autarquias, mas talvez em questões ainda mais profundas, até porque a crise que abala Quelimane não é propriamente uma excepção em grandes municípios.
Prova disso é que, em 2024, o Município da Cidade de Nampula, que conta com cerca de 700 mil habitantes, teve mesmo de recorrer a um empréstimo bancário no valor de 50 milhões de meticais para garantir, pelo menos em parte, o pagamento de salários. O vereador das Finanças, Pereira da Fonseca Napuana, explicou que cerca de 25 milhões foram imediatamente reservados para cobrir a folha salarial dos funcionários municipais, uma medida que revela um grande nível de pressão financeira.
Um problema transversal, de norte a sul
Da recôndita Namaacha a Nampula urbana; da pacata Manjacaze a Quelimane com os seus 400 mil habitantes, o padrão é claro: as autarquias moçambicanas enfrentam um grave problema de sustentabilidade financeira. A resistência dos munícipes ao pagamento de impostos corrói a capacidade de arrecadação local, enquanto a irregularidade na canalização dos fundos centrais cria rupturas constantes no funcionamento das instituições.
Apesar da gravidade da situação, o Estado moçambicano não se tem coibido de, a cada ciclo de 10 anos, instituir novas autarquias. As eleições autárquicas de 2023, por exemplo, consagraram a instituição de mais 12, nomeadamente Marracuene, Matola-Rio, Massingir, Homoíne, Caia, Guro, Morrumbala, Mossuril, Ibo, Balama, em Cabo Delgado, Mecanhelas e Chitima.
Assim, Moçambique passou a ter um total de 65 territórios autarcizados, na sua maioria com graves problemas de sustentabilidade.




