Um estudo recente do Observatório do Meio Rural (OMR), da autoria dos investigadores João Feijó e Aslak Orre, analisa o chamado “período liberal” em Cabo Delgado, que se seguiu ao Acordo Geral de Paz de 1992. Este intervalo, marcado por um renovado e intenso interesse internacional pelos recursos naturais da província, aprofundou desigualdades e criou um terreno fértil para o conflito que viria a eclodir em Outubro de 2017.
Texto: Amad Canda
Após o fim de 16 anos de guerra, Cabo Delgado tornou-se palco de uma exploração acelerada de madeiras tropicais, pedras preciosas, marfim e, mais tarde, gás natural. A extracção de madeira, impulsionada pela procura asiática e popularmente apelidada de “Chinese take away”, levou à desflorestação de vastas áreas. De acordo com o estudo, estas operações, muitas vezes ilegais, contaram com a conivência de autoridades locais, enquanto os fundos destinados a compensar as comunidades foram mal geridos, gerando desconfiança.
A descoberta de rubis em Montepuez, salienta o documento, desencadeou uma febre mineira artesanal. Porém, a atribuição de concessões a empresas formalizadas, como a Montepuez Ruby Minning, um consórcio entre elites nacionais e a britânica Gemfields, resultou numa resposta repressiva por parte do Estado. Operações de segurança entre finais de 2016 e inícios de 2017 expulsaram à força milhares de garimpeiros, interrompendo bruscamente uma importante fonte de rendimento local.
Em paralelo, a caça furtiva de elefantes para abastecer o mercado de marfim asiático intensificou-se, envolvendo, segundo o estudo, elementos das próprias Forças de Defesa e Segurança e contribuindo para um declínio acentuado da população de elefantes.
A pressão sobre a terra aumentou significativamente, primeiro com o apetite turístico pelo litoral e arquipélago das Quirimbas e, depois, com os megaprojectos de gás natural na península de Afungi, no distrito de Palma. Para piorar, os processos de reassentamento das populações locais foram marcados por alegações de falta de transparência, consultas manipuladas e promessas de desenvolvimento não cumpridas.
De acordo com Feijó e Orre, este cenário económico foi acompanhado por profundas clivagens sociopolíticas. Enquanto um grupo restrito, maioritariamente da elite maconde e cristã, consolidou o seu acesso ao Estado e aos recursos, as comunidades muçulmanas do litoral, maioritariamente muanis, sentiram-se progressivamente marginalizadas e excluídas dos benefícios do investimento na região. De resto, pontua o estudo, a tensão política entre a Frelimo e a Renamo, no período póseleitoral, confundiu-se, por vezes, com estas divisões étnico-religiosas.
Ora, foi neste contexto de descontentamento juvenil, pobreza e percepção de injustiça no acesso a oportunidades que começaram a surgir, a partir do final dos anos 2000, seitas islâmicas no nordeste do País, aponta o documento que temos vindo a citar. Um desses grupos, autodenominado Al-Sunnah Wal-Jamâa – popularmente conhecido como Al-Shabab – rejeitava as instituições do Estado laico e advogava a implementação da Sharia. Entrando em conflito com as autoridades religiosas tradicionais, o grupo viu as suas mesquitas encerradas pelo Estado, radicalizando-se progressivamente.
Em Outubro de 2017, o grupo realizou o seu primeiro ataque armado em Mocímboa da Praia, alvejando inicialmente as forças de segurança. A sua mensagem, divulgada através de palestras e redes sociais, combinava um discurso religioso fundamentalista com queixas de desemprego, corrupção, injustiça social e a exclusão das populações locais dos benefícios dos recursos da sua própria terra.
Neste momento, o País caminha para o nono ano de terrorismo naquela província, que segue activo apesar da presença das tropas ruandesas no terreno – também já lá esteve a Missão da SADC em Moçambique (SAMIM) -, em apoio às Forças de Defesa e Segurança de Moçambique.
Ainda assim, cumpre referir que as condições de segurança melhoraram substancialmente, o que é corroborado pelo iminente regresso da TotalEnergies, líder do Projecto Mozambique LNG, na Área 1 da Bacia do Rovuma, depois de levantar a cláusula de força maior que se encontrava em vigor desde 2021.
Mantém-se, contudo, o regime de exclusão a que grande parte da população está votada e que, de acordo com vários estudos, constituirá uma das raízes do terrorismo




