O Auditório Dr. Luís Nanjolo, na sede da Universidade Pedagógica de Maputo, foi pequeno para acolher a sessão de diálogo organizada pelo Manifesto Cidadão, que juntou, a 19 de Novembro, duas das vozes mais influentes do pensamento político moçambicano: o filósofo Severino Ngoenha e o politólogo José Jaime Macuane. Durante cerca de duas horas, ambos revisitaram a história da democracia no País, diagnosticaram a crise de representação que afecta o Parlamento e apresentaram propostas de reforma que, no seu entender, podem devolver o sistema político aos cidadãos. No centro do debate esteve a ideia avançada por Macuane: a introdução de círculos uninominais, capazes de reforçar a responsabilização directa entre eleitos e eleitores.
Texto: Amad Canda
A sessão abriu com uma reflexão histórica conduzida por Ngoenha, que recordou que a democracia moderna nasceu para acomodar várias sensibilidades sociais. Em Moçambique, afirmou, esse ideal foi sendo substituído por uma lógica de captura partidária, que transformou o Parlamento num instrumento de interesses internos e não num espaço da cidadania plural. “O nosso Parlamento tornou-se um microfone de interesses partidários, não um espaço onde a verdade dos cidadãos é ouvida”, lamentou. Para o filósofo, o problema tornou-se estrutural após os Acordos de Roma, quando os mecanismos de representação passaram a reflectir prioridades oligárquicas dos partidos dominantes, em particular da Frelimo.
Um dos pontos que mais eco gerou na sala foi o mecanismo de selecção dos deputados. Ngoenha relatou um episódio ilustrativo, mormente de uma deputada que, confessando-lhe receios, admitiu que não poderia contrariar o partido sob pena de não voltar a figurar nas listas. “Quem determina a eleição não é a população, é o partido”, criticou. Nesta lógica, sublinhou, o deputado não responde ao eleitor, mas sim à direcção partidária, o que compromete a essência da representação democrática e alimenta a desconfiança da população.
Macuane, por sua vez, sublinhou a “politização disfuncional” que penetrou áreas onde a política deveria ter apenas papel indirecto. “A política extravasa para a economia, para a esfera social, até para a vida pessoal das pessoas”, alertou, notando que, quando tudo se decide politicamente, as decisões técnicas deixam de ter espaço e o Estado perde eficácia.
Ora, este excesso alimenta a abstenção, que hoje ultrapassa 50%: os eleitores não reconhecem os candidatos porque estes surgem de listas fechadas definidas pelos partidos, sem contacto com as comunidades. “Se o eleitor não reconhece os candidatos da lista, perde motivação para votar”, frisou.
Foi neste contexto que Macuane lançou a proposta de a criação de círculos uninominais, em que cada distrito ou área geográfica elegeria apenas um deputado. “Sistemas com círculos uninominais aumentam a responsabilização directa do deputado perante a população local”, explicou. Este modelo, amplamente utilizado noutros países, permitiria ao eleitor identificar com clareza o seu representante e exigir-lhe contas, quebrando a distância que hoje separa deputados e cidadãos.
Para o politólogo, a reforma poderia ser parte de um sistema misto, combinando círculos uninominais com representação proporcional, garantindo pluralismo e proximidade ao mesmo tempo.
Mais adiante, Ngoenha complementou a discussão propondo a introdução de candidaturas independentes ao Parlamento, permitindo que uma comunidade possa apoiar directamente a pessoa que reconhece como seu porta-voz, mesmo sem filiação partidária.
“Se uma comunidade reconhece alguém como seu porta-voz, essa pessoa deve poder candidatar-se, mesmo sem partido”, defendeu. Já Macuane sublinhou o papel das listas abertas como mecanismo para reforçar a legitimidade individual dos deputados, obrigando-os a dialogar com os seus círculos e não apenas com as direcções partidárias.
Necessidade de pressão
Ambos os académicos insistiram que nenhuma reforma será efectiva sem uma transformação ética profunda na vida pública. “Precisamos de representantes que não trabalhem nem para si, nem para o partido, mas para o povo de Moçambique”, afirmou Ngoenha, alertando para a degradação moral que afecta sectores decisivos da governação. Macuane, por seu lado, deixou claro que a mudança não virá de dentro do sistema político: “Se não houver pressão da cidadania, nada vai mudar. Os partidos protegem os seus próprios interesses.”
Como que a fazer jus à sua designação oficial – Terreno Comum – o debate terminou com uma convergência de ideias: Moçambique vive uma crise de representação profunda e, para que o Parlamento volte a ser uma verdadeira “Casa do Povo”, é necessário reduzir o controlo partidário, abrir espaço à participação directa dos cidadãos, reforçar os mecanismos de responsabilização e promover uma ética pública que privilegie o serviço ao País.




