– O inusitado golpe, assacado a Sissoco Embaló, é o 10º em África desde 2020
A Guiné-Bissau está no topo da actualidade política africana, e novamente por más razões – o “golpe de Estado” que interrompeu as eleições presidenciais na véspera da divulgação dos resultados finais. Mesmo que os golpes em si tenham deixado de ser novidades num país habituado a transições de poder antidemocráticas, o deste ano é peculiar, por apresentar fortes indícios de ter sido perpetrado pelo Presidente em exercício, a fim de continuar a exercer poder de forma indirecta.
Texto: Dossiers & Factos
Até 26 de Novembro do presente ano, a GuinéBissau havia testemunhado três golpes de Estado bem-sucedidos: em 1980, 2003 e 2012, aos quais de somam outras cinco tentativas fracassadas. No entanto, em nenhum dos actos de deposição do Governo por meio da força a vítima e o vilão convergiam na mesma pessoa. Umaro Sissoco Embaló parece ter conseguido essa façanha, como tendem a indicar vários factos antes, durante e depois do golpe.
Por mera questão de actualidade, comecemos pelos factos mais recentes, mormente a formação do Governo de Transição, que, segundo os militares, vai dirigir a Guiné-Bissau por um ano. No sábado, 29 de Novembro, a Presidência da República anunciou a composição do Governo de Transição, que curiosamente inclui sete figuras com ligação – directa ou indirecta – a Umaro Sissoco Embaló.
A nível ministerial, as figuras em causa são Ilídio Vieira Té (indicado para os cargos de PrimeiroMinistro e Ministro das Finanças; foi Ministro das Finanças de Embaló e igualmente seu director de campanha); Abduramane Turé (Ministro da Comunicação Social e actual director da Rádio África FM, propriedade de Embaló); Carlos Pinto Pereira (Ministro da Justiça e Direitos Humanos e antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Embaló); e José Carlos Esteves (Ministro das Obras Públicas, Habitação e Urbanismo, o mesmo cargo que ocupou no Governo do Presidente deposto).
Já ao nível das Secretarias de Estado, os nomes do anterior Governo que integram o Governo de Transição são Fatumata Jaú, Secretária de Estado da Cooperação Internacional; Mamadu Baldé, Secretário de Estado do Tesouro; e Elísio Gomes Sá, Secretário de Estado do Orçamento e Assuntos Fiscais. Os três exercem exactamente as mesmas funções que já lhes tinham sido confiadas por Embaló.
Não menos importante, o Governo de Transição, que inclui seis membros do PAIGC – o principal partido da oposição – entretanto desavindos com a respectiva liderança, deverá trabalhar sob a égide do Presidente da República de Transição, Major-General Horta Inta-a, que foi Chefe de Estado-Maior particular de Umaro Sissoco Embaló, eleito em 2020.
Presidente “deposto” em liberdade, opositores presos
Recuando ao dia 26 de Novembro, saltam à vista mais factos considerados estranhos e que ajudam a alimentar a teoria de que o propalado golpe não passa de uma encenação orquestrada pelo então Presidente em exercício. Um deles tem que ver com o facto de os golpistas estarem a empreender uma perseguição contra opositores de Embaló – há relatos de uma tentativa frustrada de detenção de Fernando Dias, que reivindica a vitória eleitoral, e da detenção efectiva de Domingos Simões Pereira, líder do PAIGC e da coligação PAI–Terra Ranka, que foi impedida de participar no pleito eleitoral de 23 de Novembro.
Inicialmente, foi também noticiada a alegada detenção de Sissoco Embaló, que, estranhamente, “fugiu” para o Senegal na quinta-feira, 27 de Novembro, antes de transitar para o Congo.
Goodluck Jonathan e primeiro-ministro senegalês expressam estranheza
Na Guiné-Bissau, há, entre a sociedade civil, uma forte corrente de opinião que defende a ideia de que, efectivamente, o golpe levado a cabo pelo autointitulado Alto Comando Militar foi engendrado pelo próprio Umaro Sissoco Embaló para impedir a conclusão de um processo eleitoral cujos resultados supostamente não lhe seriam favoráveis.
Todavia, a sociedade civil daquele país dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) não é a única a assinalar tiques de dramaturgia na actual crise política guineense. O antigo Presidente da Nigéria, Goodluck Jonathan, que esteve na Guiné-Bissau como observador, apontou várias circunstâncias estranhas.
“Os militares tomam o poder e o Presidente em exercício que eles derrubam ainda tem permissão para dar conferências de imprensa e anunciar que foi preso? Quem está a enganar quem?”, questionou Jonathan, citado pela Africanews. Por sua vez, o Primeiro-Ministro senegalês, Ousmane Sonko, não hesitou em apelidar o episódio de “complot”, apesar de o seu Presidente, Bassirou Faye, ter sido responsável pelo frete do avião a bordo do qual Embaló deixou a Guiné-Bissau.
Por sua vez, o chefe da Missão de Observação da União Africana, Filipe Nyusi, evitou entrar em polémicas, referindo que a tarefa da missão que liderava consistia apenas em “observar” o processo eleitoral.
Um Presidente tendencialmente autoritário
Militar de profissão e politólogo de formação, Umaro Sissoco Embaló já vinha revelando apetência pelo autoritarismo, somando no seu mandato duas dissoluções do Parlamento. A primeira ocorreu em 2022, sob alegação de que os deputados estavam a transformar a Assembleia Nacional num “espaço de guerrilha” e “conspiração”.
A segunda teve lugar a 4 de Dezembro, justificada por uma suposta protecção, por parte do Parlamento, de deputados suspeitos de crimes graves. Na sequência, nomeou um Governo de iniciativa presidencial, violando o princípio constitucional que confere ao partido ou coligação com maioria parlamentar a prerrogativa de formar o Executivo.
Entretanto, aos factos acima arrolados junta-se a permanência no poder para além do período do seu mandato de cinco anos. Considerando que tomou posse a 27 de Fevereiro de 2020, Sissoco Embaló deveria, na opinião de grande parte da sociedade guineense, ter cessado funções a 27 de Fevereiro de 2025.
Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça da GuinéBissau decretou que o mandato em causa deveria terminar a 4 de Setembro de 2025. Mesmo assim, Embaló só realizou eleições passados mais de dois meses – e com o desfecho que se conhece.
10 Golpes em cinco anos
Encenação ou não, a situação vivida na GuinéBissau configura o 10.º golpe de Estado bem-sucedido em África desde 2020, com a região ocidental a apresentar-se como epicentro da instabilidade.
A cronologia destes golpes inicia-se no Mali, em Agosto de 2020, quando o Presidente Ibrahim Boubacar Keïta foi derrubado por oficiais que instalaram uma junta liderada pelo coronel Assimi Goïta. Menos de um ano depois, em Maio de 2021, o mesmo Goïta protagonizou o segundo golpe no país, afastando o Presidente interino Bah Ndaw e assumindo ele próprio a chefia do Estado.
Em Setembro de 2021, a crise atingiu a GuinéConacri, onde o Presidente Alpha Condé foi capturado pelos militares e substituído por uma junta comandada pelo coronel Mamady Doumbouya. Pouco depois, em Outubro de 2021, foi a vez do Sudão, onde o general Abdel Fattah al-Burhan dissolveu as instituições de transição e afastou o Primeiro-Ministro civil Abdalla Hamdok, assumindo o controlo do país.
A vaga de instabilidade avançou para o Burkina Faso, que registou dois golpes em 2022: o primeiro em Janeiro, com a deposição do Presidente Roch Marc Christian Kaboré pelas forças leais ao tenentecoronel Paul-Henri Sandaogo Damiba; o segundo em Setembro, quando Damiba foi removido por jovens oficiais liderados pelo capitão Ibrahim Traoré, actualmente no poder.
Em Julho de 2023, o Níger assistiu à queda do Presidente Mohamed Bazoum, derrubado pela sua própria guarda presidencial, sob o comando do general Abdourahmane Tchiani, que se autoproclamou Chefe de Estado. Seguiu-se o Gabão, em Agosto de 2023, onde o Presidente Ali Bongo Ondimba foi afastado poucas horas depois de anunciar a sua reeleição, com o general Brice Oligui Nguema a liderar a tomada do poder.
A instabilidade chegou a Madagáscar em Outubro de 2025, quando protestos e confrontos institucionais culminaram no afastamento do Presidente Andry Rajoelina, substituído por uma junta chefiada pelo coronel Michael Randrianirina.



