O encontro organizado pela Universidade Joaquim Chissano (UJC), na quinta-feira, 11 de Dezembro, juntou académicos, investigadores e estudantes na cidade de Maputo para revisitar quase quatro décadas de interacção com a instituição de Bretton Woods, em particular com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O debate permitiu destacar sucessos, reconhecer efeitos adversos e discutir os caminhos futuros desta relação. No primeiro painel intervieram os economistas Roberto Tibana, Dereck Mulatinho e Edmundo Macuácua, que, embora com abordagens distintas, convergiram na defesa da necessidade de repensar o enquadramento da parceria com o FMI, reforçando a capacidade de negociação do País e adoptando políticas económicas coerentes com as prioridades internas.
Texto: Milton Zunguze
No painel dedicado à parceria com o FMI — sustentabilidade e estabilidade da economia ao longo de meio século de independência — o economista Roberto Tibana, PhD em Economia, questionou, logo no início da sua intervenção, o uso recorrente do termo “parceria” na comunicação oficial do Governo quando se refere ao FMI.
Segundo Tibana, apesar do discurso político que apresenta o FMI como parceiro de desenvolvimento, a essência da relação é profundamente assimétrica, assentando num modelo de “supervisão e condicionalidade”, no qual países como Moçambique dispõem de reduzida margem de manobra.
“Devemos falar de uma parceria institucional, com cooperação técnica e política para fortalecer instituições fiscais, monetárias e estatísticas. Mas há limites claros para o uso do conceito. Muitas vezes, os governos usam o FMI para legitimar reformas”, afirmou.
O economista sublinhou que o FMI é, antes de tudo, uma organização intergovernamental dominada pelos seus principais credores, com destaque para os Estados Unidos da América, cujo peso financeiro e geoestratégico influencia, em muitos casos, o rumo das negociações e o acesso aos recursos.
Tibana alertou ainda que o poder dos accionistas do FMI não deriva apenas das quotas financeiras, mas também da importância estratégica de cada país. Recordou casos em que decisões de financiamento foram influenciadas por interesses políticos de grandes potências, como a instalação de bases militares ou o alinhamento diplomático.
“Se determinado país africano tiver interesse estratégico para os Estados Unidos, é provável que o director do FMI receba um telefonema do Tesouro americano a indicar como tratar esse país”, exemplificou.
A partir desta leitura, Tibana questionou porque razão países como Etiópia, Gana ou Zâmbia recebem financiamentos de milhares de milhões de dólares, enquanto
Moçambique, enfrentando desafios semelhantes, obtém montantes muito mais modestos. Para ele, a explicação combina factores geopolíticos, diplomáticos e internos, entre os quais fragilidade institucional, instabilidade política e fraca capacidade de negociação.
“Moçambique é um país pequeno, com pouca influência e com dificuldades institucionais. Mas dispomos de factores que podem servir de alavanca. Faltanos capacidade para os utilizar de forma estratégica.”
O economista explicou também que um dos pilares da relação com o FMI é o sistema de condicionalidades, que inclui critérios de desempenho, metas macroeconómicas, acções prévias e reformas estruturais. Para aceder a um novo programa — sobretudo após o cancelamento do anterior devido às dívidas ocultas — Moçambique terá de cumprir acções prévias cuja natureza ainda não foi oficialmente divulgada.
“É fundamental saber quais são as acções prévias impostas pelo FMI. O país precisa de transparência sobre as condições reais para retomar o financiamento”, defendeu. ´
Da estabilização ao crescimento desigual: 38 anos de altos e baixos
O economista Dereck Mulatinho apresentou uma análise histórica da relação com o FMI desde 1987, estruturando-a em três fases: estabilização (1987–1999), alívio e crescimento (2000– 2015) e emergência das fragilidades estruturais agravadas pela crise das dívidas ocultas (2016–presente).
Durante a fase de estabilização, recordou, Moçambique obteve progressos expressivos: a inflação caiu de cerca de 50% para níveis inferiores a 1% em 1998; o crescimento médio atingiu 10% entre 1996 e 1998; e registaram-se avanços significativos na disciplina fiscal e no fortalecimento do Banco Central.
A liberalização da indústria do caju — conduzida pelo Banco Mundial, mas associada a reformas exigidas pelo FMI — foi apontada como um dos maiores fracassos do período. A abertura à exportação de castanha bruta levou ao encerramento de fábricas, à perda de milhares de postos de trabalho e a uma lenta recuperação da capacidade produtiva. ~
“Privatizámos cerca de 900 empresas, perdemos poder industrial e destruímos capacidade produtiva. Passámos de exportar 50 mil toneladas de castanha para apenas 10 mil”, lamentou Mulatinho.
Entre 2000 e 2015, Moçambique beneficiou do alívio da dívida e retomou um ritmo de crescimento robusto, em média 7% ao ano. A taxa de pobreza caiu de 69% para 46%. Contudo, segundo o economista, tratou-se de um crescimento “sem transformação”, sustentado por megaprojectos com baixa absorção de mão-de-obra e sem diversificação económica relevante.
“A estabilidade nominal não significa desenvolvimento estrutural. Estabilizámos variáveis macroeconómicas, mas não transformámos a economia”, observou.
Mulatinho criticou também erros na análise da dívida, incluindo a subestimação da má governação, a falta de transparência e a dependência de modelos do FMI que priorizam dados quantitativos e ignoram indicadores qualitativos. Defendeu políticas compensatórias que acompanhem reformas estruturais, para evitar a destruição de indústrias emergentes, como sucedeu com o caju.
Entre as recomendações apresentadas, destacou a necessidade de maior transparência nos contractos públicos e megaprojectos, o reforço da supervisão parlamentar, auditorias regulatórias independentes, protecção do investimento público estratégico, incentivos às cadeias agro-industriais e reforma dos mecanismos de avaliação da dívida.
Desigualdade e concentração de poder no FMI
O académico Edmundo Macuácua afirmou que a parceria com o FMI deveria contribuir para a sustentabilidade económica e para o melhor desempenho de economias frágeis, mas, na prática, tem frequentemente resultado no agravamento das desigualdades internas.
“A concentração de poder no FMI deriva da capacidade financeira dos países membros. Os países desenvolvidos têm maior poder decisório, deixando os países em desenvolvimento sem meios para defender plenamente os seus interesses”, afirmou.
Macuácua propôs uma mudança profunda na forma como a parceria é conduzida, assente em cinco eixos: inovação e digitalização para melhorar sistemas de pagamento e transacções internacionais; desenvolvimento de mercados financeiros nacionais robustos e resilientes; coordenação reforçada entre FMI e Banco Mundial para mobilizar recursos destinados a enfrentar desafios estruturais como clima, dívida e pobreza; maior inclusão e melhor governação interna no FMI; e promoção de políticas orientadas para crescimento sustentável e redução da pobreza.
O evento contou ainda com participações de Egas Daniel, Hipólito Hamela, Armando Inronga e Sudecar Novela, que integraram o segundo painel, dedicado ao dilema da escassez de divisas no sistema financeiro moçambicano e às suas implicações para a economia nacional.



