Ganhou as eleições na Argentina prometendo não fazer negócios com a China, mas poucos dias depois da posse encetou aproximação. Fartou-se de hostilizar o governo brasileiro, liderado por um presidente – Luiz Inácio Lula da Silva – a quem chegou a chamar de ladrão, mas não se coibiu de o convidar para a sua cerimónia de posse. A real politic (e economia) tem dado um banho de realidade a Javier Milei, que assim se vê com dificuldades de implementar o seu “anarco-capitalismo” numa Argentina que está de “joelhos”.
Texto: Amad Canda
A postura pública disruptiva de Javier Milei, que se classifica a si próprio como el loco, faz com que dele se espere qualquer coisa. Ainda assim, suas declarações ao jornalista norte-americano Tucker Carlson, há semanas das eleições presidenciais, não deixaram de causar tremores de terra na Argentina, especialmente entre os sectores mais moderados.
Com todas as letras, o então candidato afirmou que, sob sua égide, Argentina não faria negócios com países que ele considera comunistas. De forma explícita, referiu-se à Rússia, Brasil e China.
A declaração causou ondas de choque no “País das Pampas”, e, olhando para a geopolítica, dificilmente se esperaria uma reacção menos dramática. É que, para além de vizinho e principal potência da América Latina, Brasil é o parceiro comercial número um da Argentina, com mais de 16% de exportações do país, à frente de China (8%) e EUA (6%).
Por sua vez, o “País do Tango” é o terceiro maior fornecedor de produtos ao Brasil, com 5,0% do total, depois de China (22,1%) e EUA (16%).
A China está igualmente longe de ser um parceiro descartável, mais ainda depois de, em 2022, e de acordo com o estudo do Conselho Empresarial Brasil China (CEBC), citado pela BBC, ter destinado USD 1,34 bilhão para a falida Argentina.
Ademais, de há alguns anos a esta parte Argentina faz parte da chamada ‘Nova Rota da Seda’, projecto desenvolvimentista chinês, tendo sido a primeira grande economia da América Latina a aderir à iniciativa.
O banho de realidade após a posse
Abdicar de valiosos parceiros comerciais por conta de ideologias políticas é capaz de ser uma ideia suicida, sobretudo quando se é uma economia a passar por momentos tenebrosos, com a inflação a ultrapassar a impressionante barreira dos 200%.
Milei pode ser “loco” mas não nos níveis necessários para pegar na motosserra e “serrar” o país aos olhos de todos e, com isso, sua própria carreira política, que está agora no auge. A realidade havia de moderá-lo, previu-o Rafael Machado, especialista em geopolítica.
“Milei tem mil defeitos, ideias malucas, princípios esquizofrénicos, consciência infantil e não tem nada de antissistema: mas ele não tem a menor condição de implementar nem 10% dos seus projectos económicos mais delirantes”, escreveu na rede social X, antigo Twitter.
Dito e feito. Javier Milei tem sido significativamente mais moderado depois de chegar à Casa Rosada, emitindo sinais claros de “acto de contrição” em relação a várias das suas declarações enquanto mero aspirante à presidente da República. Pouco antes da posse, convidou Lula da Silva para o acto solene, numa carta que é a antítese da forma como antes tratara o estadista brasileiro.
O “ladrão” foi substituído por “estimado presidente”, e quem falava em não fazer negócios com “comunistas” passou já a pensar em “construir laços”. “”Em ambas as nações temos muitos desafios pela frente e estou convencido de que uma troca nos campos económico, social e cultural, baseada nos princípios da liberdade, nos posicionará como países competitivos em que os seus cidadãos podem desenvolver ao máximo as suas capacidades e, assim, escolher o futuro que desejam”, escreveu Milei.
Sinais apaziguadores foram emitidos também em direcção à China, com o novo presidente a responder de forma cordial às felicitações de Xi Jimping pela eleição. Já depois da posse, e segundo revela Money Time citando o Infobae, Milei terá entregado ao enviado chinês uma carta endereçada a Xi Jimping, na qual pedia ao gigante asiático ajuda para pagar a astronómica dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Para já, a realidade vai tratando de moderar o ultraliberal, que, entre as promessas que mais o afastam do governo cessante, apenas conseguiu concretizar a não adesão aos BRICS. De resto, mesmo internamente, antevê-se dificuldades para implementar algumas das suas ideias mais “radicais”, visto que não tem maioria no legislativo.