Sim, é um facto inalterável. De hoje, 15 de Julho de 2024, para 15 de Janeiro de 2025, data prevista para a tomada de posse do novo Presidente da República, que será eleito nas eleições presidenciais de Outubro próximo, faltam acertadamente 180 dias. É o tempo que falta para Filipe Jacinto Nyusi abandonar oficialmente o Palácio da Ponta Vermelha e o Gabinete da Presidência da República, dando espaço a um novo timoneiro. A chegada dessa data há-de ser um momento de alegria para muitos que já não o querem neste cargo, e de tristeza para outros que gostariam de o ver acomodado no poder.
Texto: Dossiers & Factos
Reza a história que tudo o que tem princípio tem o seu fim, e 15 de Janeiro de 2025 será o final de uma longa caminhada de 10 anos de governação, o tempo máximo que o Chefe de Estado pode permanecer no poder de forma ininterrupta, de acordo com a Constituição da República no nº 4 do artigo 147º. Foram 10 anos (o décimo ainda em curso), durante os quais o Presidente foi classificando cada ciclo de 365 dias (um ano) de diferentes formas em seus informes sobre o Estado Geral da Nação.
Em 2015 (16 de Dezembro), na primeira vez que se fez ao pódio do Parlamento para apresentar a radiografia do País, Nyusi assumiu claramente que não estava “satisfeito” com a situação da Nação, ainda que se gabasse do trabalho realizado. “Estaríamos contentes se tivéssemos resolvido definitivamente os problemas básicos da pobreza, da exclusão e da paz”, justificou-se. No ano seguinte, 2016 (17 de Dezembro), Filipe Nyusi voltava à Assembleia da República para afirmar que o “Estado da Nação mantém-se firme rumo ao desenvolvimento”, vincando uma capacidade maior de dar resposta aos desafios presentes e futuros. Em 2017 (20 de Dezembro), o Estado da Nação foi descrito como “desafiante, mas encorajador”, com o Presidente a apelar ao contributo de todos para a preservação da paz, democracia e desenvolvimento económico.
Já em 2018 (19 de Dezembro), Nyusi disse que o Estado da Nação é “estável e inspira confiança”, antes de encerrar o seu primeiro mandato, em 2019 (31 de Julho), com a frase “o Estado da Nação é de esperança e um horizonte promissor”.
No seu primeiro informe do segundo ciclo de governação, em 2020 (16 de Dezembro), o Chefe de Estado foi ao Parlamento afirmar que o Estado da Nação é de “resposta inovadora e de renovada esperança”. A mensagem de optimismo voltou a estar presente nos anos subsequentes, uma vez que, em 2021 (16 de Dezembro), o Estado da Nação foi de “auto-superação, reversão às tendências negativas e conquista da estabilidade económica”, enquanto em 2022 (20 de Dezembro) foi de “estabilização e de renovado optimismo”.
Entretanto, no ano passado (20 de Dezembro), o Presidente defendeu que “Moçambique criou bases para crescer nos próximos anos como um Estado competitivo, sustentável e inclusivo”. Para fechar definitivamente o ciclo, falta a avaliação relativa a 2024, a ser apresentada no quarto trimestre do ano.
Alianças polémicas
A nível de política externa, a governação de Filipe Nyusi é marcada sobretudo pela aproximação a líderes e regimes considerados ditatoriais pela opinião pública. O destaque vai mesmo para o estreitamento das relações bilaterais com o Ruanda, o parceiro preferencial de Nyusi no combate ao terrorismo. Tanto assim é que as forças ruandesas foram as primeiras a chegar a Cabo Delgado e, neste momento, são a única força estrangeira a combater ao lado das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique, visto que a Missão da SADC (SAMIM) decidiu abandonar o teatro das operações.
Oficialmente, a SAMIM alegou falta de meios, mas se sabe que a razão de fundo tem que ver com o alegado apoio ruandês ao M23, movimento de insurreição armada que actua no Leste da República Democrática do Congo. Tanto assim é que, ao mesmo tempo que abandona Moçambique, a SADC reforça sua missão naquele País dos Grandes Lagos.
Entretanto, as críticas internas à relação com Ruanda subiram de tom recentemente, depois da ratificação, pela Assembleia da República, do acordo de extradição entre os dois países. Para a oposição e sociedade civil moçambicanas, o instrumento serve apenas para oficializar a perseguição de figuras incómodas ao regime de Paul Kagame que se encontram em território nacional.
O fantasma do terceiro mandato
Num contexto em que se receava que o Presidente Filipe Nyusi poderia vir a tentar um terceiro mandato, uma sugestão que lhe foi apresentada em plena reunião do Comité Central da Frelimo, realizada em Maio de 2021, a amizade entre Nyusi e Kagame adensou ainda mais as preocupações na sociedade. É que havia quem sugerisse que o estadista moçambicano estaria a beber da experiência do seu homólogo, que alterou a constituição para assegurar a permanência no poder, com vista a replicá-la em Moçambique.
Acto contínuo, Filipe Nyusi também trabalhou no reforço da cooperação com Uganda, País que visitou em Maio de 2022 e de onde voltou com promessas de apoio à Força Local e garantia de disponibilidade para o envio de tropas, em caso de necessidade. Ora, Uganda é dirigido por Yoweri Museveni, que exibe sem pudor traços de um ditador implacável e que trata o país como propriedade privada.
Tal como Kagame, Museveni recorreu à emenda constitucional para “perpetuar-se” no poder, abolindo o limite de idade (73 anos) para a presidência da república. Em 2021, quando já cumpria 35 anos no poder, Museveni foi reeleito para um sexto mandato, num pleito marcado pelo cerco montado pelos militares à residência do principal líder da oposição, Bobi Wine.
A histórica entrada no Conselho de Segurança
Nem todos os movimentos da administração Nyusi no plano externo mereceram críticas. Alguns até atraíram elogios de todas as partes, com a eleição a membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas a ser a maior das conquistas.
Eleito por unanimidade em Junho de 2022, Moçambique cumpre um mandato de dois anos. Até ao momento, já presidiu rotativamente o órgão por duas ocasiões. No Conselho de Segurança, Moçambique liderou a concepção da primeira proposta de resolução de cessar-fogo em Gaza (Palestina) que foi aprovada pelo órgão, o que representa um claro triunfo diplomático.
Sectores sociais à sua sorte
Fazendo a retrospectiva dos 10 anos de governação, fica a sensação de que Filipe Nyusi conseguiu, ironicamente, ser mais eficaz no primeiro ciclo, apesar do corte do apoio ao Orçamento por parte dos parceiros de cooperação, do que nos segundos cinco anos, com as “torneiras” abertas.
Foi no segundo mandato, de resto, que começou a ficar mais evidente o desastre em que se transformou a educação no País, com os atrasos na distribuição dos livros, erros de palmatória ao nível de conteúdos e persistência de “árvore- -salas” a serem apenas a ponta do iceberg. A percepção da opinião pública é de que este pelouro é irrelevante para o Presidente, sustentada, por exemplo, no facto de aparentemente ter tido medo de fazer mexidas de vulto (exoneração da ministra) como parte do processo de devolução da Educação aos carris.
A nível da Saúde, a situação não é diferente. Há registo de dificuldades de toda a ordem, desde falta de iluminação, insuficiência de medicamentos, equipamentos de protecção e capacidade tecnológica para a realização de exames médicos e outras operações mais complexas.
Não bastassem os problemas de ordem logística, a Saúde e Educação têm os seus profissionais descontentes e desmotivados, muito por culpa das supostas injustiças salariais provocadas ou aprofundadas pela Tabela Salarial Única (TSU) e a recorrerem várias vezes a greves como forma de protesto.
Recentemente, também os Magistrados da Magistratura Judicial anunciaram a pretensão de paralisar as actividades. Em jeito de resposta, o Governo afirmou, através da ministra da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, Helena Kida, não ter soluções para os juízes. Aparentemente, não tem para nenhuma classe.
Ainda aliado a empregabilidade, Nyusi assumiu recentemente o fracasso na criação de empregos especialmente para os jovens, depois de em 2020 ter prometido 3 milhões de postos de trabalho.
O pesado fardo da insegurança
É certo que o próximo condutor dos destinos da Nação herdará um fardo difícil de carregar. Para além dos problemas acima arrolados, Filipe Nyusi deixará a presidência sem ter conseguido resolver as grandes preocupações ao nível da segurança – o terrorismo e os raptos.
Não obstante os avanços registados desde 2021 a esta parte, os terroristas ainda dão mostras de ter capacidade militar, logística e de mobilidade, alternando entre ataques directos às FDS e acções bárbaras e covardes contra a população de Cabo Delgado. Para piorar a situação, há relatos de desmotivação entre os elementos das FDS, resultado de falta de condições adequadas de trabalho, atrasos salariais e até da percepção de que às lideranças do País não interessa erradicar o extremismo violento.
O terrorismo tem contribuído sobremaneira para a deterioração do ambiente de negócios, afastando os investidores. Mesmo efeito têm os raptos que parecem imparáveis nas principais cidades do País. Este é um mal que perdura há vários anos e ao qual o Presidente Nyusi prometeu combater, por exemplo, com a criação de uma brigada anti-raptos, o que, até agora não aconteceu. Refira-se que, por conta deste fenómeno, centenas de empresários já abandonaram o País e tantos outros ponderam fazê-lo.
Presidente das iniciativas
Várias iniciativas presidenciais também marcaram o magistério de Filipe Nyusi, que se foi desdobrando para inaugurar pessoalmente grande parte das suas realizações. Foi assim que, ao longo destes nove anos e meio, escalou inúmeros cantos do País para fazer a entrega de sistemas fotovoltaicos e centrais eléctricas no âmbito do programa Energia para Todos, que tem como objectivo garantir acesso universal até 2030.
Nyusi empenhou-se também na construção de sistemas de abastecimento de água, no âmbito do Programa Água Para a Vida (PRAVIDA), privilegiando sobretudo as zonas rurais. Ainda no âmbito social, é digna de realce a iniciativa Um Distrito, Um Hospital, que permitiu que cada vez mais moçambicanos tenham acesso aos serviços de saúde.
Não menos importante são as iniciativas “Um Distrito, Um Tribunal” e “Um Distrito, Um Banco”, que visam promover o acesso à justiça e a inclusão financeira, respectivamente.
Com projectos positivos e negativos, Nyusi prepara-se para deixar o poder, uma saída que, certamente, é boa para muitos, má para os outros.