Continua sem fim à vista o caos em que Moçambique se encontra mergulhado desde o anúncio dos resultados das eleições gerais de 9 de Outubro, tidos como fraudulentos pelos partidos da oposição. As sucessivas paralisações convocadas por Venâncio Mondlane mantêm a vida ordinária do País suspensa, enquanto jovens embriagados pela fúria, e que já nem a morte parecem temer, tomam as ruas. Quinta-feira, 7 de Novembro, foi o dia mais crítico, mas, afinal, dias piores estão a caminho.
Texto: Amad Canda
Ainda nas primeiras horas do dia que Venâncio Mondlane cunhou de “dia da libertação do colono preto”, em referência ao regime do dia, começaram a mostrar-se indícios de que 7 de Novembro seria mais cinzento do que a previsão do Instituto Nacional de Meteorologia. Ao céu cinzento, proporcionado por aquele clima ameno, juntavam-se nódoas cinzentas de gás lacrimogéneo que contribuiriam para que o dia fosse tudo, menos ameno.
No alto do seu senso de humor, houve quem dissesse que “Alto Maé parece a Síria”. Histerias à parte, foi-o, assim como diversos outros bairros da cidade de Maputo que, tal e qual Dâmaso, se transformaram subitamente em verdadeiros campos de batalha, opondo os manifestantes às forças policiais, concretamente a Unidade de Intervenção Rápida (UIR) e o Grupo de Operações Especiais (GOE), devidamente apoiados pelos elementos do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC). Em dia de “guerra”, ironicamente, acabaram por ser os militares os únicos com uma postura pacifista.
As restantes forças estavam empenhadas em impedir o acesso dos manifestantes à zona cimento da capital. Para tal, tudo valia. Que o diga o numeroso grupo de jovens que, partindo de Malhampswene, irrompeu pela linha férrea e, à entrada da cidade, na zona da Maquinag, foi recebido com gás lacrimogéneo.
Uns recuaram, mas outros tantos seguiram destemidos, à semelhança do que se verificava em vários outros “portões” da capital.
Guerrilha urbana
O plano era que a marcha fosse pacífica, mas uma série de factores, entre eles a brutalidade da polícia – uma vez mais, dispararam gás, balas de borracha e até munições reais contra os manifestantes – levou ao abandono do roteiro. Foi o que se viu, por exemplo, na Avenida Joaquim Chissano. Neste troço, que carrega o nome do primeiro Presidente democraticamente eleito de Moçambique, confluíam centenas e centenas de jovens oriundos dos bairros que ladeiam a Avenida de Moçambique e outros provenientes de bairros tais como Infulene, T3 e Patrice Lumumba, na cidade da Matola. Juntavam-se ali aos sempre determinados jovens dos bairros de Maxaquene e Polana Caniço e, em coligação, faziam o braço-de-ferro com as forças policiais.
Pedras e fisgas compunham o parco arsenal usado para contrapor os disparos dos homens da “lei e ordem” que, nesse dia, mais contribuem para instaurar a desordem, num tudo ou nada para impedir o acesso à praça da Organização da Mulher Moçambicana (OMM), que assistiu impávida ao cruel assassinato de Paulo Guambe e Elvino Dias, ambos da entourage de Venâncio Mondlane, crivados de 25 balas na madrugada de 19 de Outubro.
O cenário repete-se, quase que a papel químico, em vários outros cantos. Mas nem sempre há confrontos, uma vez que, na maior parte das vezes, a polícia, cuja actuação merece elogios do vice-comandante geral e da ministra dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Verónica Macamo desfere ataques injustificáveis. A imagem que mostra homens da UIR a alvejarem um pequeno grupo de jovens ajoelhados, portanto resignados, é elucidativa neste particular cenário. Ademais, a internet está inundada de vídeos e fotos de gente atacada por estar armada de cartazes e por ter o grito de revolta engatilhado na garganta.
A redenção das FADM
A avaliar pela natureza da sua formação, poucos imaginariam que as Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) seriam o bastião da civilidade no dia mais tenso que a capital já testemunhou no contexto da actual crise. Várias vezes tiveram de ser eles, os militares, a chamar à razão à polícia, demandando um tratamento humanizado aos milhares de manifestantes que acorreram às ruas.
A eles se deveu, aliás, uma das caminhadas mais ordeiras do dia. Deu-se na Avenida Eduardo Mondlane. Lado a lado com os soldados, os manifestantes marcharam ao som do “panelaço” que, nestes dias de crise, se tornou a principal trilha sonora da cidade de Maputo. E quando as coisas saíram dos carris – outra vez por iniciativa da UIR – foram vistos a distribuir máscaras para que a população, na sua maioria sem poder de compra para usar gás de cozinha, se protegesse do gás lacrimogéneo.
Os manifestantes deixaram a cidade certos de que “militar é do povo”, como revelaram os cânticos. É, por assim dizer, uma espécie de redenção de uma classe mal-amada em Cabo Delgado, onde, no âmbito do combate ao terrorismo, é amiúde acusada de cometer graves atrocidades.
Violentas em Moçambique, pacíficas no estrangeiro
Pese embora Venâncio Mondlane sublinhe o carácter pacífico das manifestações, a verdade é que estas têm, desde o início, degenerado em actos de violência, vandalismo e pilhagem perpetrados quer pelos manifestantes, quer por elementos da Polícia da República de Moçambique (PRM).
Ora, esse clima de violência criou condições para que o movimento reivindicativo que tomou conta do País se replicasse noutras latitudes onde há comunidades moçambicanas expressivas. Lisboa, Porto e Coimbra (Portugal); São Paulo e Ceará (Brasil); Londres (Reino Unido); e Berlim (Alemanha) são algumas das cidades que vêm acolhendo manifestações pela “justiça eleitoral”, “direitos humanos” e por um “Moçambique melhor”.
Ao contrário do que sucede em solo pátrio, as marchas da diáspora não têm sido reprimidas pela polícia. Angola, onde os organizadores foram detidos, é a excepção.
A situação do País tomou proporções gigantescas e já não há quem se mantenha indiferente. Em nota conjunta, as representações diplomáticas dos Estados Unidos da América, Canadá, Reino Unido, Noruega e Suíça pedem “contenção” e respeito pelo “Estado de direito e pela vida humana”. Adicionalmente, partilham a expectativa de que o Conselho Constitucional “cumpra as etapas finais do processo eleitoral de forma transparente e em conformidade com o seu mandato”.
Em Portugal, o Bloco de Esquerda submeteu uma proposta de resolução para que o Governo português não reconheça os resultados eleitorais em Moçambique. Por sua vez, o Brasil, através do Ministério das Relações Exteriores, expressou preocupação com a escalada de confrontos entre as Forças de Defesa e Segurança e os manifestantes, exortando as partes para que tenham contenção por forma a assegurar “o exercício pacífico da cidadania no quadro democrático”.
Há também sinais de preocupação no plano regional. A Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) convocou uma reunião para discutir a crise pós-eleitoral em Moçambique. A reunião é de emergência, mas só terá lugar entre 16 e 18 do mês em curso, no Zimbábue, País que exerce a presidência rotativa da SADC. Refira-se que, pela sua localização geográfica, Moçambique é essencial para os países do hinterland, pelo que o prolongamento da instabilidade representa perdas económicas avultadas.
E dias piores aproximam-se
Organizações Não-governamentais, como o Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD) e a Human Rights Watch (HRW) estimam em mais de três dezenas o número de mortos nas manifestações, aos quais se juntam dezenas de feridos e centenas de detidos. Ainda assim, Venâncio Mondlane não parece estar disposto a recuar, afirmando que os protestos só vão parar depois da “reposição da verdade eleitoral”, o que, na sua perspectiva, significa declarar a si e ao partido que o apoia – o Podemos – os verdadeiros vencedores das eleições.
É caso para dizer que podem variar os contornos, mas o banho de sangue após eleições é uma certeza em Moçambique, que já soma três décadas de democracia multipartidária.
- Extraído da edição 587 do Dossiers & Factos