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FERNANDO VAZ: “Neste Governo há incapacidade e corrupção”

– Sei lá como os governantes actuais são ricos.

Nasceu em 1928 e faz parte de um selecto grupo de moçambicanos que, ainda no período colonial, teve a oportunidade de fazer o ensino superior. Médico-cirurgião, cresceu ao lado de figuras icónicas da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), como Marcelino do Santos e, no estrangeiro, conviveu, por exemplo, com Agostinho Neto. De volta à Pátria Amada, na época pós-independência, foi director do Hospital Central de Maputo, vice-ministro e ministro da Saúde. Ainda assim, não é rico e não sabe como os governantes actuais são ricos. Em grande entrevista, Fernando Vaz, para quem a Frelimo fez um “trabalho extraordinário no passado”, não tem receio de apontar a “incapacidade, intolerância e corrupção” como os problemas mais preocupantes do actual Governo, a quem responsabiliza pela falta de humanização e empatia no Serviço Nacional de Saúde. Acompanhe a entrevista no formato pergunta e resposta.

Texto: Seródio Towo

Dossiers & Factos (D&F): Doutor Vaz, o senhor é uma figura importante neste País, com um percurso muito ligado a alguns dos nomes mais históricos da Nação. Fale-nos um pouco do seu trajecto. Fernando Vaz

(FV): É verdade, veja que fui amigo de Marcelino dos Santos, desde os 12 anos, quando jogávamos a bola nos terrenos devolutos de Lourenço Marques. Fomos juntos para a Casa dos Impérios, da qual eu fui presidente. E a Casa dos Impérios era o berço das independências de África e da Ásia. Estou há muito tempo neste movimento de independência. Eu conheci o Amílcar Cabral, o Gilmário Pinto de Andrade, o Agostinho Neto, que era médico.

D&F: Nessa altura, também já era médico?

FV: Já era médico. Trabalhava nos hospitais civis de Lisboa, como cirurgião. E, como recebi uma bolsa, obrigaram-me a trabalhar em Timor-Leste. Eu fui trabalhar em Timor durante cinco anos.

D&F: E a sua amizade com Marcelino dos Santos prevaleceu até quando?

FV: Prevaleceu até à morte, tal como a minha amizade com Samora Machel. Eu fui director do Hospital Central durante 10 anos. Fui vice-ministro da saúde e depois ministro. E, quando cheguei a ministro, eu disse: “não quero, não quero mais ser ministro”.

“Pedi ao Presidente Chissano para me exonerar”

D&F: Não foi exonerado?

FV: Naturalmente, fui exonerado, mas foi a meu pedido. É claro que o Presidente (Joaquim Chissano) não disse isso. Só informou que me havia exonerado, mas foi a meu pedido. Porque eu tinha dito a ele que lhe ia ajudar, mas por três anos.

D&F: Por que razão pediu a exoneração?

FV: Foi porque eu estava cansado. Sabe o que é ser ministro? Não pense que é só mordomias. Os ministros são o conjunto de pessoas que apoiam o Presidente para a tomada de decisões. Imagine que declaremos guerra, eu tenho que me pronunciar sobre isso. Imagine que tu vendas aviões, tenho que me pronunciar sobre isso, e tenho que estudar. Imagina que é publicado um decreto sobre finanças, também tenho que estudar.

D&F: Como foi a conversa na qual pediu ao Presidente para que lhe exonerasse ao cabo de três anos?

FV: Bom, foi confidencial. Nós já nos conhecíamos há muito tempo, porque meu ministro era Pascoal Mucumbe, que era muito amigo do Presidente Chissano, e Chissano convidou Mucumbe para ministro dos Negócios Estrangeiros. Então, eu disse-lhe: “olha, Senhor Presidente, eu já estou cansado. Eu só sei fazer cirurgias, não sei governar um País. Portanto, durante os próximos três anos ajudo, mas depois me liberte”. E ele me libertou ao fim de três anos. Honrou o compromisso, sem dúvida nenhuma.

D&F: E quando o nomeou, deu alguma orientação estratégica?

FV: Não, não. Ele não dava orientações estratégicas. Ele dizia: “faça o que tu entenderes”. Ao contrário do Presidente Samora, que dava orientações.

D&F: Já agora, qual era o maior desafio que tinha quando ministro no seu sector?

FV: o grande problema que nós tínhamos no sector da saúde tinha a ver com [a falta de] recursos humanos especializados. Sabe qual é o principal problema da saúde neste País? É a saúde pública. É o lixo, a água inapropriada, o problema da habitação e alimentação. Isso é que são os problemas do País. Tu não sabes proteger a tua saúde. Tu (jornalista) podes ter boa casa, água potável, etc., mas mais de 50% da população não tem habitação ou tem habitação precária, não tem abastecimento de água, alimentação condigna, protecção do meio ambiente, é por isso que a gente formou os agentes polivalentes elementares, para trabalharem na comunidade.

“O desastre de Mbuzine foi o que mais me chocou”

D&F: Exceptuando a falta de recursos humanos, durante o tempo em que trabalhou como médico e dirigente, qual foi o momento que lhe deixou mais aflito?

FV: Infelizmente para mim, lembro-me de muitas coisas tristes. Aquilo que mais me marcou foi desastre de Mbuzine. A morte de Samora Machel e dos camaradas todos foi o que mais me chocou. Mas eu assisti ao desastre de Nhazónia, que começa no dia 7 de Setembro, avança para 21 de Outubro. Eu vi aquelas mortes todas, só assistia a desgraças.

D&F: Fale-nos um pouco da desgraça de Nhazónia

FV: Sobre este desastre, tenho muito que contar. Você tem que saber que havia a Rodésia, a independência de Moçambique, e que a gente abrigava políticos zimbabweanos que lutavam contra o Ian Smisth, que dirigia a Rodésia. Foi Ian Smith que atacou. Ele atravessou a fronteira, entrou na nossa estrada, que vai da Beira para Tete, passando por Catandica. Atacouu a ponte de Punguè e avançou para a aldeia de Nhazónia, onde havia uma base das tropas zimbabweanas, os rebeldes. Ele foi lá, estavam pintados de preto, e disseram que queriam conversar com a aldeia. Chamaram todos. Depois de os chamarem mataram-nos.

D&F: Onde estava nessa altura?

FV: Eu era ministro da saúde, portanto no dia seguinte tive que voar para Nhazónia, e encontrei os corpos todos lá, atirados ao chão. 800 mortos. Também havia muitos sobreviventes que fugiram para o Hospital Central da Beira.

“Falta humanização, amizade e simpatia nas unidades sanitárias”

D&F: Comparando com a era colonial, e tendo em conta a sua larga experiência, acha que o sector da saúde cresceu, estagnou ou retrocedeu? Que avaliação faz?

FV: O sector de Saúde cresceu. Não só em unidades sanitárias, mas também em cobertura do País e em número de profissionais de saúde. Mas tenho que referir que nós ainda não cobrimos todo o País. Cobrimos só 70% e o resto está entregue à medicina tradicional, que é muito sensível. Até hoje, a medicina tradicional é muito respeitada pelo povo moçambicano.

D&F: Isso é um dado positivo ou não?

FV: É um dado positivo, porque eles sabem tratar as doenças. Mas quando têm sintomas muito graves que não conseguem tratar ou explicar, enviam os doentes à unidade sanitária.

D&F: O País vivia momentos de crise, sobretudo na década 80, que era a década de desenvolvimento. O sector de saúde tinha poucos profissionais, mas não se via tantas reclamações como acontece agora em que o País está mais desenvolvido…

FV: Nós também éramos poucos. Era uma população mais curta. Agora, com uma população maior, as exigências são muito maiores.

D&F: Qual é o sentimento de um profissional como o Doutor Vaz quando a sociedade queixa-se do tratamento nas unidades sanitárias, da falta de medicamentos, etc? FV: O problema é falta de humanização no trato com os doentes. É falta de humanização, de respeito, de amizade, de simpatia. Isto é muito importante. D&F: O que podemos fazer para que este cenário mude?

 FV: É preciso, primeiro, satisfazer os profissionais de saúde. É preciso que a gente tenha capacidade de responder às necessidades que o trabalhador tem para poder tratar bem o doente. É preciso ter gesso, ligaduras, etc. É preciso ter o essencial, condições hospitalares dignas, alimentação suficiente para um doente. Depois de satisfazer isso, é preciso ter um salário compatível com a função. E depois disso é preciso voltar a ensinar os trabalhadores de saúde as regras mais básicas de convivência com os doentes.

D&F: Porque razão isso não acontece ainda? No seu entender, o que estará a falhar?

FV: Eu fui director do Hospital Central de Maputo durante 10 anos, e tu não fazes ideia do que era aquilo. Era muito complicado, havia muita descriminação. E eu, quando precisasse de alguma coisa, não ligava ao ministro da saúde, ligava directamente ao Presidente Samora. Precisando de arroz, por exemplo, dizia “Senhor Presidente, a gente está sem nada hoje”, e ele mandava.

D&F: E se ligasse para o ministério?

FV: o ministério tinha outros problemas. Não tinha capacidade para resolver.

D&F: O Governo, através do Ministério da Saúde, dirige este sector. Há algum papel específico que um ministro do sector pode desempenhar para melhorar a situação – e não me refiro a aspectos financeiros?
FV:
A primeira greve que existiu dentro da Saúde foi no tempo do director [Alexandre] Manguele, quando ele era ministro. E aderiram a greve os médicos filiados á Associação Médica de Moçambique e muitos dos médicos dos hospitais e fora dos mesmos. Ele lá conseguiu resolver o assunto criando o chamado estatuto do médico, que previa seguro de saúde, subsídio de risco, serviço diuturno, feriados, etc. Manguele fez aprovar esse estatuto no Conselho de Ministros e a greve acabou. Simplesmente, agora não estão a pagar isso. Não pagam subsídio de renda de casa, de risco, serviços de urgência. E depois quando há falta de medicamentos, a coisa estoira.

D&F: Portanto, a situação de mau atendimento está relacionado ao erro cometido pelo Governo?

FV: Sim. O Governo é que tem a culpa.

D&F: Qual é o maior sonho que ainda tem?

FV: É transformar esta instituição em universidade. E, na realidade, o outro maior sonho que tenho é que a saúde seja um benefício para todos, sobretudo para as pessoas que vivem nas zonas rurais. Você sabe que acima de 70% da população vive nas zonas rurais. Só 30% vive nas cidades. É claro que as cidades estão mais protegidas, até porque existe a medicina privada, mas nas zonas rurais as pessoas morrem por malária, fome, por doenças provocadas pelo

“Neste Governo há incapacidade, intolerância e corrupção”

D&F: Voltemos às suas relações com Marcelino dos Santos. Na altura, viajou com ele para Portugal?

FV: Fui com Marcelino dos Santos a Portugal. Ele depois foi para Grenoble, onde encontrou Aquino Bragança e foram depois juntos para Paris, onde os encontrei mais tarde.

 D&F: Ele estudava o quê?

FV: Era para ser engenheiro.

D&F: Já imaginou um dia ouvir que a Frelimo está na oposição?

FV: Eu sou do tempo da criação da Frelimo, e não há dúvidas de que a Frelimo fez um trabalho extraordinário.

D&F: Está feliz com a governação actual da Frelimo, com a forma como a Frelimo cuida do povo?

FV: Comparando com o passado, com a minha convivência com Samora Machel e com os ministros do tempo em que eu era governante, é claro que este Governo está muito aquém daquelas capacidades.

D&F: O que mais lhe preocupa neste Governo?

FV: É a incapacidade, a intolerância e a corrupção.

D&F: Mais alguma coisa a apontar?

FV: Eu acho que a escola de ministros é muito delicada. Sabes que Samora juntava-nos a nós todos para escolher os ministros? Não tomava decisões de qualquer maneira. Por exemplo, eu quando fui nomeado vice-ministro soube só pela rádio. Ele não me consultou, mas reuniu com outros. E eu ainda perguntei “o que é que o senhor Presidente quer, quer um vice- -ministro ou um cirurgião?”. E ele disse “quero as duas coisas”.

D&F: Qual é o ministro da saúde que mais lhe marcou, exceptuando Frenando Vaz, claro?

FV: Hérder Martins. Foi aquele que definiu as linhas gerais do Serviço Nacional de Saúde.

D&F: Pela negativa, quem mais lhe marcou?

FV: Talvez eu (risos).

“Sei lá como os governantes estão ricos”

D&F: O professor é rico? Enriqueceu durantes estes anos em que trabalhou no Governo?

FV: Eu agora estou à rasca. Se não tivesse trabalhado aqui não tinha dinheiro. Estou reformado, recebo a minha reforma do Estado. Tenho a minha casa e pronto.

D&F: Os governantes actuais estão ricos…

FV: Sei lá como eles estão ricos. Eu não estou rico

D&F: Tem algum recado para o próximo Governo?

FV: Tem uma responsabilidade muito grande.

 D&F: Não deixa nenhum conselho?

FV: Não, não. Só se me vierem pedir directamente

 

Texto extraído na edição 589 do Jornal Dossiers & Factos

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