A tensão política e social que se arrasta há quatro meses, impulsionada pela contestação dos resultados eleitorais, pelo elevado custo de vida e pela insatisfação em relação ao poder instituído, expõe, por outro lado, a profunda crise que abala o partido FRELIMO. Nesta segunda parte do artigo sobre as crises que marcaram o percurso da FRELIMO, Dossiers & Factos revisita mais episódios que, ao longo dos mais de 60 anos de existência, puseram à prova a coesão deste partido, que começou como um movimento libertador. A história demonstra que a FRELIMO já enfrentou inúmeras crises, algumas resultantes de dinâmicas internas e outras impostas por factores externos. No entanto, há um traço comum em todas elas – a resiliência. O partido pode sentir-se abalado, mas, até agora, nunca caiu.
Texto: Seródio Towo
Conforme assinalamos na edição anterior, a FRELIMO conseguiu derrotar a fúria dos colonos que estavam contra a autodeterminação de Moçambique em 1974, estabelecendo-se como representante legítima dos interesses da Nação e da população moçambicanas. Mesmo assim, não conseguiu ver-se livre da contestação; pelo contrário, foi contestada de forma sangrenta e duradoura, através da guerra dos 16 anos, movida pela RENAMO mas enquadrada no contexto da Guerra Fria, de acordo com várias fontes históricas.
Fortemente influenciada pela então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e outros países que compunham concretamente a Europa do Leste, a FRELIMO abraçou o marxismo-leninismo, o que provocou a reacção do bloco capitalista que, através da Rodésia do Sul e, mais tarde, da África do Sul do Apartheid, financiou a RENAMO para desestabilizar o País.
Na sua versão dos factos, a RENAMO alega que sua luta foi pela democracia, mas história oficial, bem como vozes da própria FRELIMO, indica que a “perdiz” era apenas um instrumento de desestabilização ao serviço dos inimigos externos de Moçambique, cuja fragilização visava igualmente impedir que o regime de Samora Machel continuasse a prestar apoio aos países vizinhos que ainda lutavam pela sua independência, com realce para a África do Sul e o Zimbabwe.
Esta guerra, que por sinal foi até ao momento a mais sangrenta da história de Moçambique, resultou na morte de mais de um milhão de pessoas, sendo que outras cinco milhões tiveram de se refugiar em países vizinhos. Refira-se que o censo realizado em 1970 havia indicado que a população de Moçambique situava-se em 11 milhões de habitantes, o que torna ainda mais dramático o nível de mortalidade registado na guerra civil.
Dos ataques à Matola ao assassinato de Samora Machel
O período que vai de 1977 a 1992 foi verdadeiramente difícil para a FRELIMO, que teve de lidar não apenas com a RENAMO, mas também com ataques di rectos do regime do Apartheid, que começaram no final da década de 70 e se intensificaram na década seguinte.
Neste contexto, destacam-se os ataques aéreos e terrestres contra a cidade da Matola, província de Maputo, em 1981, visando supostas bases do Congresso Nacional Africano (ANC), movimento independentista sul-africano apoiado pela FRELIMO, que abrigava em solo pátrio alguns dos seus mais importantes líderes, como é o caso de Jacob Zuma, actualmente a figura mais destacada do partido umKhonto weSizwe, depois de se desentender com a direcção do ANC.
Graças a esforços diplomáticos, Moçambique e a África do Sul assinaram, em 1984, o Acordo de Nkomati, no qual Moçambique se comprometia a não apoiar o ANC, enquanto a África do Sul prometia cessar o apoio à RENAMO. Todavia, e de acordo com registos históricos, as cláusulas do acordo não foram respeitadas pelo lado sul-africano, que continuou a apoiar o movimento de guerrilha fundado por André Matsangaíssa.
Além disso, outra crise que abalou seriamente a FRELIMO foi o acidente aéreo que vitimou Samora Moises Machel em Outubro de 1986, acto macabro do qual o regime do Apartheid é, no plano interno, apontado como tendo sido causador. Contudo, há vozes que acreditam que elementos internos da FRELIMO terão conspirado para o assassinato do então Presidente do partido e do País. O facto é que, oficialmente, os autores morais e materiais do acto são desconhecidos. Outro facto é que, mesmo perante este verdadeiro “abalo sísmico”, a FRELIMO, uma vez mais, estremeceu mas não caiu.
Eleições e guerra sempre estiveram de mãos dadas
Com o assassinato do segundo presidente da FRELIMO (recorde-se que o primeiro também foi assassinado), coube a Joaquim Chissano tomar as rédeas da FRELIMO e do País, tendo sido sob sua égide que Moçambique conheceu o fim da guerra civil, através do Acordo Geral de Paz (AGP), assinado em Roma, em 1992.
Através do AGP, a FRELIMO de Chissano e a RENAMO de Afonso Dhlakama comprometeram-se a acabar com o regime monopartidário para instituir a democracia liberal em Moçambique. Foi nesse espírito que, em 1994, tiveram lugar as primeiras eleições gerais, ganhas pela FRELIMO e por Chissano.
Desde 1994, o País realiza eleições gerais em cada cinco anos, o mesmo acontecendo com as autárquicas, introduzidas em 1998, facto que tem rendido elogios da comunidade internacional. No entanto, praticamente todos os pleitos geraram denúncias de fraude eleitoral, especialmente por parte da RENAMO, que tantas vezes ameaçou reactivar suas bases e arrastar Moçambique para mais um conflito.
Se em 1994, 1999 e 2004 Afonso Dhlakama ficou-se apenas pelas palavras, em 2012 concretizou a ameaça, na esteira da contestação aos resultados eleitorais das eleições gerais de 2009, que tinham resultado na recondução de Armando Guebuza à Presidência da República, onde tinha chegado em 2004.
Dhlakama começou por se instalar na base de Satunjira, a 17 de Outubro, de onde coordenou ataques ao longo do troço Rio Save–Inchope, com particular incidência na zona de Muxúnguè, província de Sofala. A 21 de Outubro de 2012, as Forças de Defesa e Segurança (FDS) atacaram a base de Satunjira, obrigando Dhlakama a fugir para a serra da Gorongosa. Para a RENAMO, o ataque representava uma “declaração de guerra”, o que resultou na intensificação dos ataques da perdiz na zona Centro, mas também na província de Nampula, no norte do País.
Este clima de tensão, que resultou em mortes, destruição e danos sérios à economia nacional, prevaleceu até Agosto de 2015, quando, ao fim de 69 rondas de negociação na cidade de Maputo, o Governo e a RENAMO alcançaram um acordo para a cessação das hostilidades, que incluía, entre outras cláusulas, a paridade nos órgãos de administração eleitoral.
Portanto, foi já com uma Comissão Nacional de Eleições (CNE) e um Conselho Constitucional declaradamente partidarizados que o País acolheu as eleições gerais de 2014. Ainda assim, não desapareceram acusações de fraude eleitoral. A RENAMO voltou a não reconhecer os resultados, ameaçando voltar ao mato.
Em 2015, Dhlakama fez uma digressão pelo País, anunciando que iria nomear governadores nas províncias onde acreditava ter vencido. Foi em meio a essa digressão que, a 25 de Setembro de 2015, o “líder” e sua comitiva caíram numa emboscada em Zimpinga, na província de Manica, tendo escapado ileso e fugido para a serra da Gorongosa. Duas semanas depois, foi cercado na sua própria residência, na Beira, pelas FDS, depois de sair da serra com ajuda de uma equipa de mediadores.
Dias depois deste episódio, amplamente condenado pela oposição e pela sociedade civil, o então líder da RENAMO voltava a desaparecer dos radares, e o conflito agudizou-se drasticamente. Mesmo assim, os esforços diplomáticos sempre foram mantidos, até mesmo depois da morte de Dhlakama, em Março de 2018, tendo culminado com a assinatura dos Acordos de Maputo, em Agosto de 2019, à luz dos quais foi aprofundada a descentralização e realizado o processo de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração das forças residuais da perdiz.