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Angola: Cadáver de Zédu pode ditar futuro de João Lourenço

João Lourenço

A um mês das eleições presidenciais, Angola viu o ímpeto da pré-campanha ser cortado pela morte de José Eduardo dos Santos, em Barcelona, Espanha. Condutor dos destinos do país lusófono por aproximadamente 40 anos, Zédu ainda pode, apesar de morto, ditar o futuro próximo da nação, sendo esta uma das razões para que o seu corpo seja tão disputado.

Texto: Amad Canda

O catolicismo e as tradições africanas são, em circunstâncias várias, diametralmente opostos, mas há um aspecto no qual tendem a convergir: a valorização dos mortos. Quer numa, quer noutra realidade, reina a crença de que os antepassados podem guiar ou influenciar o destino dos vivos, daí serem comuns cerimónias de invocação de espíritos em África, tal como é comum o apelo para a intercessão dos santos na Igreja Católica Romana.

Embora tenha perdido a vida em 8 de Julho deste ano, Zédu, que é “dos Santos” a que os católicos tanto recorrem, vai provavelmente definir o futuro político de Angola, tarefa que exerceu em vida desde 1979, quando sucedeu ao histórico Agostinho Neto, até 2017, quando abriu espaço para a ascensão de João Lourenço ao mais alto cargo do Estado angolano.

Ao que se diz, José Eduardo dos Santos ofereceu o poder “de bandeja” ao seu sucessor, mas, nos últimos tempos, terá manifestado, segundo a filha Welwitschea José dos Santos (Tchizé), a vontade de ver Adalberto da Costa Júnior e a sua UNITA assumirem os destinos de Angola, porque zangado com o seu antigo “delfim”.

Sondagens indicam que essa perspectiva é mais do que provável e, neste cenário, garantir a realização do funeral do antigo estadista em Angola é fundamental para João Lourenço evitar um possível descalabro, defende o jornalista angolano José Gama.

 

“O futuro de JLo está no corpo de Zédu”

José Gama não tem dúvidas em relação à importância que o corpo de José Eduardo dos Santos pode ter no futuro político do actual presidente e do próprio Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que enfrentam uma oposição mais forte do que nunca e uma impopularidade indisfarçável – as manifestações contra o regime vêm se multiplicando nos últimos tempos.

Ciente das dificuldades que terá para garantir a reeleição, João Lourenço avançou para um plano de campanha antecipada, que viola de forma flagrante a lei angolana, a qual estabelece que a campanha deve iniciar apenas 30 dias antes da data marcada para o pleito, no caso, 24 de Agosto.

“Ele visita as províncias como presidente da república e, chegado lá, transforma-se em líder do partido e faz campanha, que inclui comícios e ofertas”, explica o escriba, acrescentando que, nesta trapaça, JLo conta com os serviços propagandísticos da Televisão Pública de Angola (TPA), “que faz um trabalho para dar a entender que todo o mundo está com o MPLA”.

A estratégia do presidente angolano correu a contento até 8 de Julho, dia em que Zédu partiu e Angola teve de se vestir de luto. Dadas as circunstâncias, explica José Gama, JLo é obrigado a travar a sua pré-campanha, dissolvendo-se assim a vantagem que tentava abrir em relação aos seus adversários.

Neste contexto, o corpo de Zédu tornou-se um “troféu” para o líder do MPLA, diz o fundador do Club K, uma plataforma de notícias conhecida também por denunciar abusos e corrupção em Angola.

“Se o corpo avançar para Angola agora, ele faz propaganda e capitaliza aquilo para a campanha eleitoral”. Já no cenário inverso, tudo se complica. Aliás, José Gama arrisca-se mesmo a dizer que o futuro político do actual presidente está “no corpo de José Eduardo dos Santos”.

 

José Eduardo dos Santos

Um embaraço total

Segundo o nosso interlocutor, profundo conhecedor da realidade angolana, a morte de Zédu é um verdadeiro embaraço para a campanha de João Lourenço, uma figura que, nos últimos meses, vinha tentando projectar-se como “homem de paz e do diálogo”.

“Está a aproximar-se a Paul Kagame (presidente do Ruanda) e Félix Tshisekedi (presidente da República Democrática do Congo) por causa do impasse que há lá. Conseguiu conversar com a família de Jonas Savimbi para o corpo de Savimbi ser exumado e enterrado no local onde estão os restos mortais dos seus familiares”.

Todo este trabalho de construção de uma imagem de “homem de consensos” fica, na perspectiva de José Gama, anulado por conta da disputa com a família de Zédu, na medida em que fica claro que “não está a conseguir sequer conversar com as filhas de José Eduardo dos Santos”.

Uma “pedra no sapato” chamada Tchizé

Tchizé dos Santos é uma das filhas do ex-presidente de Angola que se queixa de perseguição por parte do actual regime. À semelhança de Isabel dos Santos, a mais conhecida filha de Zédu, abandonou Angola e fixou residência na Espanha.

A ex-deputada – perdeu o mandato, em 2019, por “ausência prolongada nas sessões plenárias e de trabalho” – vem intensificando ataques contra a figura de João Lourenço, acusando-o, inclusive, de ter contribuído para a morte do pai. Fá-lo de forma incisiva, quer pelas redes sociais, quer pela Imprensa, e há quem a considere tresloucada.

Para José Gama, porém, as acusações de Tchizé não são de todo descabidas. “O pai [da Tchizé dos Santos] esteve em Luanda, de Setembro a Março, e não o deixavam sair, alegando que faltava passaporte do guarda e outras histórias”.

Na verdade, e segundo a nossa fonte, o plano de Zédu era ficar duas semanas em solo pátrio, mas as supostas artimanhas do regime retiveram-no por cinco meses, um período durante o qual “ficou privado das suas consultas de rotina, que tinha em Barcelona, e emagreceu, perdendo 30 quilos”.

Na percepção de Gama, o MPLA sabia que Zédu estava em fase terminal e preferia que morresse em Angola, ciente de que se o infortúnio acontecesse em Barcelona, enfrentaria a resistência das filhas, que é o que está a acontecer.

Convicta de que o pai foi morto pelo regime angolano, Tchizé dos Santos finca o pé e garante que, enquanto João Lourenço estiver no poder, não permitirá que o corpo siga para Angola. “As filhas também sabem que JLo quererá tirar proveito político do funeral, depois de ter maltratado Zédu em vida”, acrescenta o jornalista radicado na África do Sul.

 

Tchize dos Santos

JLo resgata Ana Paula dos Santos

Como forma de suplantar a resistência de Tchizé dos Santos, que garante contar com apoio de alguns dos seus irmãos, o regime angolano recorreu aos préstimos de Ana Paula dos Santos, ex-primeira dama de Angola.

O plano é fazer dela a interlocutora válida da família dos Santos para viabilizar a transladação do corpo, não obstante o facto de Ana Paula ter se separado (mas sem divórcio) de José Eduardo dos Santos, precisamente no ano em que este deixou o poder – 2017. Só que o recurso à antiga hospedeira do avião presidencial também não está a surtir os efeitos desejados, e José Gama explica porquê:

“Mesmo que eles não estivessem divorciados, estavam em separação de facto. Quer dizer que aquela pessoa [Ana Paula dos Santos] não representava mais a vontade do doente e não se sabe até que ponto o doente se sentia mal na presença daquela pessoa”.

Com os direitos da ex-primeira dama fragilizados, o regime terá forjado uma carta, através da qual Zédu pedia à Ana Paula dos Santos para que cuidasse da sua saúde, uma outra cartada em falso, segundo a nossa fonte. “Tudo o que apareceu em nome de José Eduardo dos Santos nas últimas três semanas poderá ser invalidado, porque ele estava inconsciente. Tinha problemas de músculos e nem conseguia assinar”.

O corpo de José Eduardo dos Santos é disputado em tribunais na Espanha, que, por sua vez, já deixaram claro que só poderá ser transladado para Angola mediante assinatura de todos os filhos do finado. Neste capítulo, JLo tem sérios problemas. É que, de acordo com José Gama, apenas os dois filhos que Zédu fez com Ana Paula dos Santos concordam que o corpo avance para Luanda.

Em aparente desespero, o regime trouxe à ribalta Josefa Matias, uma mulher que alega ser filha primogénita de Zédu. Sucede, porém, que em vida, Zédu recusou-se a ser pai de Josefa Matias, usada agora como trunfo do MPLA. No entender de José Gama, esta atitude ofende a honra do falecido, porquanto o projecta como “um desorganizado que não cumpria com as suas obrigações”.

Ana Paula dos Santos

Perseguição à família dos Santos visa impedir apoio à Unita

Desde a saída de José Eduardo dos Santos do poder que seus filhos enfrentam processos judiciais em Angola, sob várias alegações. Embora reconheça ter havido delitos, José Gama esclarece que os processos têm motivações políticas.

Para fundamentar sua tese, lembra que a Sonangol, petrolífera da qual Isabel dos Santos terá desviado milhões de dólares, foi o centro da corrupção nos últimos anos, mas não há nenhum responsável da empresa que esteja a ser caçado pela justiça, à excepção de Isabel dos Santos, o que mostra estar-se diante de uma “justiça selectiva”. Com que objectivo? – Perguntámos ao jornalista, que respondeu nos seguintes termos:

“Há uma convicção de que as filhas de Zédu apoiam a Unita, e perseguindo-as, bloqueando suas contas bancárias, impede-se que apoiem Adalberto da Costa Júnior”.

 

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