Começam a ser recorrentes histórias de falta de ordenados ao nível das Forças de Defesa e Segurança (FDS), incluindo os homens que estão empenhadas no combate ao terrorismo na província de Cabo Delgado, tudo por conta de supostos actos de desobediência de ordens superiores. Neste momento, há pelo menos um grupo de mais de 100 homens que está a caminho do quinto mês sem salário. Ou seja, este ano só auferiram em Janeiro. Este grupo junta-se a outras duas companhias que estão nesta situação desde finais do ano passado, elevando o número para mais de 500 homens.
Texto: Amad Canda
Esta triste realidade começa quando uma companhia pertencente ao ramo das forças de fuzileiros navais foi destacada para Macomia em Novembro de 2023 para ocupar uma posição que estava sob a responsabilidade de uma força especial do Exército moçambicano. Não havia nada de estranho, embora inquietasse ao grupo o facto de não ter sido avançada a previsão de rendição, exercício que os homens das forças especiais faziam mensalmente.
No entanto, a história passou a ter contornos amargos a partir do dia 06 de Dezembro. Nessa data, a posição foi atacada pelos insurgentes. “Trocámos fogo, resistimos”, contam as nossas fontes, que ainda assim acabariam por abandonar a posição devido à desproporcionalidade de forças, quer em termos numéricos, assim como em meios para combate.
Por conta da desproporcionalidade, as tropas moçambicanas sofreram grandes baixas, o que levou os sobreviventes, em número ligeiramente superior a 100, a retirarem-se com a expectativa de retornar à posição com reforço e mais meios de combate, o que não aconteceu.
Ao invés disso, receberam ordens para voltar para a mesma posição justamente como estavam. Ou seja, sem reforço e sem meios de combate adicionais. Diante desta situação, o grupo decidiu avançar para a cidade de Pem ba, na esperança de ter uma solução mais confortável. Foi em vão. “Insistiram na mesma ideia de que tínhamos que voltar na mesma situação em que nos encontrávamos”, afirmam as fontes, que voltaram a rejeitar essa possibilidade, alegadamente por sentirem que estavam a ser tratados como “carne para canhão”.
O preço da desobediência
Recusada terminantemente a orientação de voltar ao distrito de Macomia nas mesmas circunstâncias, surgiu uma ordem de dispensa a partir da Base Naval de Pemba. Tratou-se, no entanto, de uma ordem verbal, supostamente transmitida pela voz do chefe dos recursos humanos. Na ocasião, o mesmo responsável teria garantido que a companhia continuaria a receber seus ordenados normalmente, o que não se concretizou.
“Só recebemos no mês de Janeiro, já sem o subsídio de empenhamento, mas isso é normal tendo em conta que não estávamos na missão. Só que o salário nunca mais caiu desde então”, contam as fontes, que não escondem o desespero.
Agastados com a situação, aqueles militares abordaram os seus superiores hierárquicos, designadamente o chefe dos recursos humanos e o comandante da Base Naval, tendo então recebido a indicação de que deviam se apresentar no quartel de Pemba, para exporem ao vivo o problema, o que aconteceu entre finais do mês de Fevereiro e princípios do mês de Março. Mesmo assim, nada mudou.
De acordo com as fontes, sistematicamente há promessas de que a situação salarial será regularizada, mas “até 05 de Junho, que era o último dia de pagamento de salários, não havia nada”.
“Mesmo sem salários, estamos a trabalhar”
As fontes que temos vindo a citar, e que por razões de protecção não quiseram ser identificadas, contam que até houve uma tentativa de instauração de processos disciplinares, tendo caído por terra, alegadamente por terem sido mal elaborados. “Alegava-se no processo que estávamos ausentes desde dia 23 de Dezembro, mas nós fomos dispensados no dia 19 de Janeiro. A questão é: como é possível dispensar uma pessoa que está ausente?”.
Vítimas das suas alegadas inconsistências, os processos não avançaram, e os homens estão a trabalhar normalmente, mesmo sem salários. “Estamos a trabalhar dia e noite no quartel, mas, para além disso, temos um pelotão que está a fazer missões de acompanhamento e patrulhamento na Ilha do Ibo. Portanto, estamos, sim, a trabalhar”.
A história repete-se e cresce o exército de descontentes
Não é a primeira vez que homens das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) vêem seus ordenados a serem cortados em razão de desentendimentos com as lideranças no Teatro Operacional Norte (TON). Conforme Dossiers & Factos reportou em Fevereiro deste ano, no ano passado um grupo de mais de 400 militares que beneficiaram de capacitação ministrada pela União Europeia também ficou sem ordenados depois de se terem recusado a cumprir uma missão que consideravam “suicida”. De resto, o grupo tinha até suspeitas de alegada colaboração entre alguns dos seus superiores e o inimigo.
Ao que Dossiers & Factos apurou, a situação deste grupo ainda não se alterou. Ou seja, continuam sem ordenados, apesar de alguns estarem já no terreno a cumprir outras missões. Em outras palavras, há, neste momento, pelo menos três companhias que trabalham sem receber na província de Cabo Delgado, um dilema aparentemente sem fim à vista.
Os lesados receiam que o valor em dívida não seja mais pago. Esses temores encontram fundamento nas experiências anteriores. “Normalmente, quando ficam tanto tempo sem pagar, o dinheiro acaba por ser desviado, em parte ou na sua totalidade. Ou seja, nas ocasiões em que pagam, já não pagam tudo o que estão a dever. Há um esquema qualquer”, acusam.
“Todos receberão seus ordenados”
Dossiers & Factos contactou o chefe do Gabinete de Comunicação e Imagem do Ministério da Defesa Nacional, com o objectivo de colher a versão do ministério sobre os factos acima arrolados. Benjamim Chabualo não conseguiu dizer quando a situação poderá ser regularizada, mas assegurou que todos receberão os seus ordenados, considerando ser “normal” que haja alguma demora.
Chabualo recusou ainda que os militares em causa estejam a ser alvo de alguma punição, tendo associado o atraso salarial aos problemas decorrentes da implementação da Tabela Salarial Única (TSU). Questionado se será pura coincidência o facto de os lesados serem precisamente os que “desobedeceram” ordens superiores, Chabualo insistiu na ideia de que não há nenhuma relação entre os factos.
Texto extraído na edição 564 do Jornal Dossiers & Factos