– Envolvimento de agentes do Estado dificulta combate ao fenómeno
A nação de Moçambique encontra-se vulnerável ao contrabando de cargas em trânsito, devido aos seus múltiplos corredores de desenvolvimento que facilitam a exportação de mercadorias para diversos países da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), com destaque para eSwatini, África do Sul, Zimbabwe, Malawi, Zâmbia, Botswana e República Democrática do Congo. O corredor da Beira, no centro do País, é um exemplo emblemático da prosperidade da corrupção e dos corruptos, com enormes consequências para o Estado.
Texto: Dossiers & Factos
Devido às flagrantes fragilidades no controle das mercadorias em trânsito no Corredor da Beira, estima- -se que, nos últimos cinco anos, mais de 67 bilhões de meticais, o equivalente a uma média de 10,5% do Produto Interno Bruto (PIB) anual, foram surripiados do Estado.
Durante semanas, nossa equipe de reportagem percorreu os distritos de Machipanda, Chimoio, Gondola-Inchope, na província de Manica, e Nhamatanda, Dondo e Beira, em Sofala, para investigar o destino destas mercadorias contrabandeadas.
O que apuramos é simplesmente alarmante: toda a mercadoria que sai do Porto da Beira é selada por um consórcio denominado MECTS – Mozambique Electronic Cargo Tracking Services, S.A. – Consórcio CE, seleccionado através de um concurso público internacional. Esse processo deveria assegurar que os produtos saiam em segurança até às fronteiras moçambicanas com outros países. Mas casos de descaminho são recorrentes.
As rotas do contrabando
No controle misto da polícia moçambicana em Manica, uma rua não asfaltada à esquerda passa por um controle de fiscalização, onde ocorrem negociações de pagamentos para o uso da via. Esta rua, que passa por uma área com luxuosas casas e negócios de uma empresa chinesa, é usada regularmente à noite para o contrabando de mercadorias para o Zimbabué.
“Esta rua é regularmente usada nas noites e sai ao sul da cidade zimbabwana de Mutare, acolhendo entre três a cinco camiões por noite. As cargas são descarregadas na chamada terra de ninguém entre os dois países vizinhos e posteriormente legalizadas como carga normal no Zimbabué”, confirmou um dos camionistas que opera na região.
Além desta via, há outras alternativas em Manica, como a entrada à direita em direcção a Pinhalonga e a passagem pela Quinta da Fronteira, onde camiões nacionais e estrangeiros cruzam clandestinamente à noite. Um aldeão local relatou: “Aqui costumam passar camiões grandes para o Zimbabwe, geralmente à noite, em grupo. Costumam passar lá para as vinte horas quando estamos para dormir”.
Pontos como Chadzuka, Mugariondo, Mavinde e Chinhambudze são usados para o contrabando de mercadorias, segundo fontes empresariais locais. O contrabando envolve frequentemente produtos como combustível e fardos de roupas usadas, devido à facilidade de manuseio e rápida movimentação. “Mesmo os meus carros transportam fardos e outras cargas. O que queremos é só dinheiro, às vezes, desconfiamos de alguma coisa, mas não temos como evitar. Os caminhos estão cheios aqui”, afirmou Raimundo, um agente económico que preferiu não revelar seu nome verdadeiro.
Envolvimento das autoridades
Para que ocorra o contrabando de mercadorias, geralmente há um interessado ou cliente potencial no território nacional ou estrangeiro que deseja comprar carga ilegal. Mas as próprias autoridades fazem questão de “empurrar” os agentes económicos para esquemas ilícitos.
“Quando você carrega combustível ou mercadorias do porto da Beira para o Zimbabwe, deve estar preparado para enfrentar longas filas e processos burocráticos que exigem a corrupção de agentes. Em Moçambique, você deve sofrer correndo atrás dos documentos, enquanto do lado do Zimbabwe, em Mutare, os documentos são entregues directamente aos legítimos proprietários”.
A demora nos requisitos fronteiriços leva muitos proprietários a adoptarem mecanismos de desvio antes de chegar aos destinos declarados.
“O embaraço está nos nossos polícias. Eles deveriam organizar as filas, mas são os mesmos que boicotam as filas. Então, agente só fica a assistir enquanto fazem o que bem entendem”, disse Wiston Madjuri, camionista zimbabweano de longo curso.
“Falando sério, o que mais existe aqui é corrupção. Os próprios agentes da Unidade de Intervenção Rápida (UIR) ficam na estrada e, ao invés de organizar as filas, cobram 10 a 20 dólares para deixar passar. Nós estamos entregues à nossa sorte”, frisou.
Logo à partida, o condutor é acompanhado por um guia (as guias fugiram do controlo das alfândegas e estão a ser vendidas por nhonguistas, mas com orientação das autoridades) ou é instruído sobre os procedimentos a tomar durante a viagem até ao ponto onde a mercadoria é descarregada e recarregada para vários destinos, dentro ou fora do país, em pequenas unidades como se fossem produtos nacionais.
Nestes locais, a mercadoria é comprada por comerciantes nacionais ou estrangeiros, como fardos de roupas usadas, que são vendidos a retalho em várias lojas na cidade de Chimoio e, posteriormente, exportados para Zimbabwe, Tete, Manica, Zambézia e Sofala.
Omar Custódio, da CTA em Manica, confirmou: “Os dados indicam que o distrito de Manica possui vários corredores alternativos usados por contrabandistas para levar mercadorias ao Zimbabwe sem pagar as taxas aduaneiras”.
Alfândegas reconhecem corrupção na fronteira de Machipanda
Em declarações ao Dossiers & Factos, o director das alfândegas em Manica, Arsénio Mário Luís, reconheceu a existência de esquemas de corrupção que favorecem o desencaminhamento de mercadorias. “Actos de corrupção existem, sim. Recebemos denúncias de cobranças ilícitas para facilitar a tramitação de documentos. Compartilhamos nossos contactos na fronteira para combater isso,” afirmou.
Arsénio Mário Luís relatou ainda casos de mortes e sequestros de camionistas que transportam mercadorias diversas, supostamente perpetrados por malfeitores que se apoderam das cargas.
Por sua vez, Omar Custódio, presidente do Conselho Empresarial de Manica, admitiu haver sérios problemas no controle de mercadorias retiradas do porto para os países do hinterland, reconhecendo também a ineficácia dos selos electrónicos utilizados pela MECTS para a protecção das mercadorias.
Selagem electrónica ajuda, mas não elimina o problema
Por seu turno, o Governo, através da Autoridade Tributária de Moçambique, assinou no dia 5 de Junho de 2019 um contrato com a MECTS (Mozambique Electronic Cargo Tracking Services, S.A) com o objectivo de melhorar o controlo de mercadorias em trânsito.
De 2017 a 2019, foram emitidas 178.289 declarações de trânsito, cuja mercadoria foi transportada por 1.271.737 unidades de transporte; e de 2021 a 2023, 274.470 declarações de trânsito, transportadas por 2.071.857 unidades de transporte, representando um crescimento na ordem de 53,95% para as declarações e de 62,91% para as unidades de transporte.
De forma geral, com a implementação da Selagem Electrónica, verifica-se o aumento da segurança no transporte da mercadoria, a redução do tempo de trânsito da mercadoria e o aumento da receita, que de 2017 a 2019 foi de 189.130.599,36 mil meticais contra 241.077.213,56 mil meticais de 2021 a 2023, correspondendo a um crescimento de 27,46%.
Entretanto, através do referido relatório apresentado pelo governo de Sofala, foi mencionado que a Selagem Electrónica de Mercadorias em Trânsito faz parte de uma série de medidas adoptadas pelo Governo de Moçambique no âmbito do combate ao contrabando e descaminho aduaneiro de mercadorias.
Texto extraído na edição 164 do Jornal Dossiers & Factos