Está instalada uma verdadeira guerra entre a edilidade e a comunidade de Nhangara, na cidade da Beira, capital da província de Sofala. Em causa está a atribuição de terrenos para construção em um cemitério tradicional. Alguns singulares já estão mesmo a erguer residências, o que causa descontentamento no seio dos moradores, sobretudo os nativos.
Texto: Dossiers & Factos
“Eu cheguei aqui e encontrei um carro da agência funerária parado aqui fora. Eu não sabia o que estava a acontecer e fiquei parado aqui. De repente, eu vi estes senhores a saírem com caixão do cemitério e perguntei o que se passava. Disseram-me que estavam a exumar ossos”.
O relato é de Francisco João, chefe do regulado de Nhangara, na gestão do cemitério. É o homem responsável pela vigilância daquele cemitério tradicional e conta que, por diversas ocasiões, teve de intervir para abortar invasões e novas construções naquele local, que está a ser alvo de uma pressão exercida por cidadãos que procuram espaços para erguer habitações.
Para Francisco João, tais atitudes são inconcebíveis, pois o espaço em alusão é “sagrado” e, como tal, “carece de muito respeito”. “Não se pode tirar os ossos de pessoas aqui sem o consentimento dos familiares. Por exemplo, se um dia os familiares vierem para cá e descobrirem que as campas foram vandalizadas, eu é que serei responsabilizado. Receio que isto volte a acontecer e um dia fique preso”, disse o responsável, questionando a legitimidade de quem ousa tirar os ossos.
“Eu já exigi ao secretário do bairro, o senhor Muchanga, que me mostrasse os documentos que lhe dão o poder de exumar corpos e atribuir espaços neste local, e não me trouxe os documentos. Esta casa é muito guarnecida e o Conselho Municipal não deveria fazer este tipo de coisa”.
Uma situação arrepiante
Com o custo de vida cada vez mais sufocante, o arrendamento de imóveis revela-se pouco viável para muitos cidadãos da cidade da Beira. Por conta disso, assiste-se – agora mais do que nunca – a uma incessante corrida em busca de espaços para construção, e muitos encontram no cemitério a solução do seu problema.
É uma verdadeira disputa de espaço com os mortos que está a arrepiar a comunidade. Os moradores dizem que a situação é “incomum” e condenam o Conselho Municipal da Cidade da Beira, que, na sua opinião, assiste a tudo impávido e sereno. Os mais velhos, em particular, fazem notar a crescente degradação dos valores morais na sociedade.
“Eu estou aqui há mais de 20 anos e isto tudo não existia aqui. Sinto dor por isto estar a acontecer neste local sagrado. Há pessoas que estão a descansar aqui e muitos de nós temos famílias aqui. Por exemplo, eu tenho seis pessoas enterradas neste local e sinto dor quando vejo uma invasão desta natureza por parte de pessoas conscientes”, lamentou Joana Barreto, uma anciã de 67 anos, antes de aconselhar aos invasores a procurarem espaços em “Inhamidzua, Cerâmica, Dondo, entre outros lugares”.
Joana Barreto, que pratica actividade agrícola nas imediações daquele cemitério, lamenta também o facto de muita gente utilizar o lugar de descanso eterno dos mortos para aquilo a que chamou de “coisas indevidas”.
“Outros até namoram aqui, fazem sexo e outras coisas. É normal encontrar preservativos nas matas destes cemitério”, descreve a mulher, que é também conselheira da Autoridade Comunitária, reforçando a ideia de que não é perceptível que as pessoas se interessem em devastar um cemitério para a construção de casas de habitação, quando há, nas suas palavras, muito espaço na Beira.
Triste está igualmente Maria Jone, uma mulher de 55 anos de idade. Com semblante carregado de angústia, revela-nos que toda a sua família está sepultada naquele local, e teme que, com a onda de invasões, os seus entes queridos percam espaço para os “novos inquilinos”.
“Eu tenho medo de verdade, porque se eu morrer vão me enterrar aqui. Eu não posso sair daqui e ir para outro lado, eu tenho que ser enterrado aqui onde estão minha mãe e meu pai”, afirmou.
Por sua vez, Anselmo Joaquim, que vive nas proximidades daquele cemitério, traçou um quadro ainda mais dramático. Disse ter oito entes queridos seus sepultados no local e que quase viu três túmulos serem retirados do local para dar lugar à construção de uma residência.
“Eu estou aqui há muito tempo, algumas campas aqui já foram retiradas pelas autoridades locais para dar lugar ao parcelamento de terra e construção de novas moradias. Eu tenho oito túmulos dos meus familiares. Graças a minha intervenção não foi possível retirarem as mesmas”.
Tantos outros não tiveram a mesma sorte. A fonte garante já ter visto agentes do município trasladando ossadas humanas para um outro cemitério, e diz não saber se tal é legal ou não. O que sabe, é o que vê, nomeadamente novas infra-estruturas habitacionais naquele espaço sagrado.
Autoridades do bairro reconhecem a situação
O secretário do bairro da unidade de Nhangare, Francisco Joaquim, reconheceu haver problema de invasão dos espaços pertencentes ao cemitério, e alegou não ter mais forças para impedir o fenómeno.
“Existem mesmo pessoas que estão a invadir o cemitério e nós já fomos ter com as mesmas mas não nos dão ouvidos. Perguntamos quem atribuiu os espaços, eles não falam nada, mas estão a construir e de uma forma desordenada”, disse.
Município promete resolver o problema
Entretanto, o Conselho Municipal da Beira, na pessoa do vereador da Gestão Urbana e Equipamentos, Manuel Joaquim, indica que a disputa de espaço entre vivos e mortos é um problema real. Prossegue afirmando que há trabalhos no sentido de solucioná-lo e destaca reuniões marcadas com o regulado local.
“Não sabemos muito bem o que está a acontecer, se é o cemitério que está a crescer ou se os munícipes é que estão a invadir. Mas há desordem e é uma situação que já vivemos aquando do encerramento do cemitério do régulo Luís. Oferece-se sempre uma resistência quando se comunica às pessoas que ‘olha, já não há espaço, criem outro método de reserva porque o cemitério já está cheio”, declarou.
Manuel Joaquim apontou que, oficialmente, existem naquela urbe três cemitérios, nomeadamente: Santa Isabel, Indu e Cerâmica, mas também existem 54 cemitérios comunitários e familiares que funcionam paralelamente, sendo que um deles é o de Nhangara, que enfrenta problemas de demarcação física.
“Há um trabalho que temos que fazer com o pessoal do cadastro para tentarmos delimitar e colocar–se um ponto final onde efectivamente o cemitério termina e onde o cemitério não pode chegar”,concluiu.