O flagelo do consumo de drogas injectáveis continua a alimentar a delinquência juvenil em Moçambique. Nas grandes cidades ou vilas onde não haja entrepostos de venda de substâncias psicotrópicas. Nestes pontos há variedade. Adolescentes, jovens, adultos, negros, brancos, homens e mulheres “acotovelam-se” para sustentar o vício maligno. Neste retracto, Dossiers & Factos traz especialistas e toxicodependentes reabilitados, que reflectem sobre o impacto deste problema e sobre as possíveis soluções.
Texto: Hélio de Carlos
Entre os becos da Mafalala e os pátios do Alto Maé, na cidade de Maputo, encontram-se histórias de jovens que mergulharam no mundo das drogas e perderam tudo: família, amigos, saúde e dignidade. A cada dia, mais adolescentes iniciam a perigosa jornada do vício, transformando-se em casos emblemáticos de uma crise que vai além da toxicodependência: trata-se de uma crise de valores, abandono e falta de perspectivas, segundo os especialistas.
Eunice Brito, psicóloga e representante da Associação Braços Abertos (ABA), não mede palavras ao descrever a gravidade da situação: “Estamos a criar uma geração fraca e desprovida de limites. A falta de atenção dos pais é um dos maiores factores que levam os jovens a cair no mundo das drogas.”
Os primeiros passos rumo ao abismo
É na adolescência, entre os 11 e os 16 anos, que muitos jovens iniciam o consumo de substâncias como cigarros, álcool e, gradualmente, drogas ilícitas mais pesadas. Xavier Luís Nhantumbo, hoje com 25 anos, começou aos 14. Num misto de curiosidade, pressão dos amigos e ausência de supervisão parental, começou a fumar cigarros, experimentou cannabis e acabou por abandonar os estudos.
“Eu achava que tinha liberdade e que nada me podia parar,” conta Xavier, agora num centro de reabilitação. “Quando os meus pais saíam cedo para trabalhar e só voltavam à noite, ficava sozinho e fazia o que queria.”
A consequência imediata foi o afastamento da escola, seguido pelo distanciamento da família e a entrada no mundo da delinquência. Para sustentar o vício, Xavier começou a cometer furtos. “Cheguei a roubar bens em casa e nas ruas. Só me arrependo de não ter parado antes de destruir tudo à minha volta,” revela.
Família e sociedade: entre a ajuda e a rejeição
O relato de Xavier é um reflexo do que Eunice Brito observa no dia-a-dia da ABA. Segundo a psicóloga, “muitas famílias não compreendem que um toxicodependente é, na verdade, um doente que precisa de apoio, e não de rejeição.”
Contudo, Eunice reconhece que a dor causada pelos jovens delinquentes não é fácil de superar. “Quando o jovem rouba ou comete actos ilícitos, é natural que a família se sinta traída e os expulse. Mas esta rejeição só piora a situação.”
Ainda assim, há famílias que persistem. Foi o caso da mãe de Xavier, que tentou, de várias formas, ajudá-lo. Mas, inicialmente, o jovem recusou todo o tipo de apoio. “Dizia que não precisava da escola e que não voltaria a estudar. Isso destruiu a minha mãe, mas ela nunca desistiu de mim,” confessa.
O círculo vicioso das drogas e da delinquência
A falta de supervisão parental é apenas uma peça num puzzle maior. Eunice explica que o ambiente escolar também desempenha um papel crucial. “Os adolescentes procuram aceitação social e muitas vezes cedem à pressão dos colegas. Querem pertencer a um grupo, mesmo que isso signifique consumir drogas ou cometer crimes.”
Esta pressão social, aliada à falta de perspectiva, transforma-se num terreno fértil para o consumo de drogas e a delinquência. “Hoje em dia, muitos jovens não têm objectivos ou limites claros. Pergunta-lhes o que querem ser no futuro, e eles não sabem responder,” lamenta Eunice.
A psicóloga destaca que as drogas lícitas e ilícitas têm consequências semelhantes. Embora sejam vistas de forma diferente pela sociedade, todas alimentam comportamentos perigosos. “Quando não conseguem sustentar o vício, os jovens recorrem a actos ilícitos. Isso cria um ciclo de destruição que se perpetua.”
O impacto devastador das drogas injectáveis
Nos centros de reabilitação da Mafalala e do Alto Maé, o número de pacientes cresceu exponencialmente entre 2022 e 2023. Durante este período, cerca de 1.500 pessoas deram entrada nos programas de redução de danos, sendo que 37% vivem nas ruas e mais de metade são portadores de HIV/SIDA.
As drogas injectáveis, como a heroína, são as mais preocupantes. Barata e com efeitos duradouros, esta droga é amplamente consumida em bairros como Mafalala, Chamanculo e na Zona Militar. Muitos jovens que frequentam os centros não possuem laço familiares nem residências fixas, vivendo em condições de extrema vulnerabilidade. “O consumo de heroína é um dos principais desafios que enfrentamos,” relata um responsável pelo programa de redução de danos. “Há uma lista de espera com mais de 500 jovens. Infelizmente, ainda há muito trabalho a ser feito para controlar esta epidemia.”
Intervenções necessárias: do apoio familiar às políticas públicas
Para Eunice Brito, a solução passa por três pilares fundamentais: prevenção, apoio e reintegração. A psicóloga defende que as famílias devem estar mais atentas e envolvidas na vida dos jovens. “É preciso monitorar o que fazem, com quem andam e como passam o dia. Antigamente, a igreja era uma arma poderosa contra o vício, mas hoje, muitos pais não incentivam os filhos a frequentar espaços como esses.”
Por outro lado, as políticas públicas devem ser reforçadas. Eunice sublinha a necessidade de programas de formação profissional, incentivos educacionais e centros especializados que ajudem os toxicodependentes a encontrar um novo rumo.
“Não basta tirar o jovem das drogas. É preciso dar-lhe uma rotina, um propósito. Caso contrário, ele voltará ao mesmo ciclo,” alerta.
A ABA tem trabalhado para facilitar a reintegração social desses jovens, mas o caminho ainda é longo. “O nosso papel é educar as famílias e as comunidades para que aceitem esses jovens de volta. Rejeitá-los só agrava o problema.”
“É possível voltar, mas o caminho não é fácil”
Xavier Nhantumbo é hoje um exemplo de que há esperança para aqueles que estão dispostos a lutar contra o vício. Após meses de reabilitação, voltou a estudar e agora frequenta o 11.º ano num curso nocturno. Contudo, ainda carrega arrependimentos profundos.
“Hoje só fumo três vezes ao dia e tento manter- -me longe de problemas. Mas ainda não consigo perdoar-me pelo que fiz,” confessa.
Embora o pai tenha demorado a aceitar o regresso do filho, a mãe de Xavier foi incansável. Com o apoio dela e a dedicação do jovem, a família começou a reconstruir os laços que foram quebrados pelo vício.
O desafio de salvar uma geração
Os relatos de Xavier e os dados alarmantes dos centros de reabilitação revelam a urgência de enfrentar a crise das drogas em Moçambique. A sociedade, as famílias e as instituições devem unir esforços para evitar que mais jovens caiam no abismo do vício.
Como Eunice Brito resume, “prevenir é sempre melhor do que remediar. Mas, para isso, precisamos de uma sociedade que ofereça aos jovens um futuro, e não apenas castigos para os seus erros.”