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Crónica do dia em que polícias foram vândalos

O povo moçambicano, especialmente a camada jovem, ainda não se recuperou da “babalaze” (ressaca, em xichangana) do desaparecimento físico do rapper Azagaia, a quem é colado, sem contestação aparente, o epíteto de herói. Entretanto, a dor e consternação têm sido mesclados com diversas acções de homenagem ao MC de intervenção social cuja dimensão extrapola as fronteiras do Hip Hop, da música e de Moçambique. O maior movimento de tributo consistia na realização de marchas, no último sábado, 18 de Março, nas principais cidades do país. Só que as marchas deram lugar a correrias incessantes devido à brutalidade da polícia, que usou gás lacrimogénio e cassetetes para reprimir actos pacíficos e legais, numa flagrante violação da Constituição da República e dos Direitos Humanos. Desta vez, os “vândalos e marginais” estiveram fardados.

 Texto: Amad Canda

Pouco antes da hora da concentração, juntam-se numa das principais avenidas da cidade de Maputo centenas de jovens com objectivo de iniciar a marcha em homenagem ao nome maior do rap nacional e um dos gigantes da lusofonia. O ponto escolhido para o efeito é onde está a estátua de Eduardo Mondlane, de punho em riste, uma imagem que lembra a coreografia com que o próprio Azagaia acompanhava o coro “Povo no Poder”, que entretanto tende a tornar-se, agora ainda mais, slogan da revolta popular.

Os jovens estavam ávidos de homenagear o seu ídolo, mas foram os agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM) os primeiros a chegar ao local, determinados a impedir que a marcha, cuja legalidade é inquestionável, tivesse lugar. Um oficial explica aos organizadores que o itinerário teria de ser alterado, para a perplexidade de todos.

Não há acordo. Mas também não há agitação. Há apenas centenas de jovens empunhando dísticos, e outros ainda com punhos no ar. Doutro lado, um “punhado” de agentes da lei e ordem empunhando armas. Aos poucos, começa a vislumbrar-se com maior nitidez o que está por vir: os “cães de raça” – sim, também está a Polícia Canina – não iam deixar passar as outras raças.

 

Ordens para pulverizar

Os minutos passam e os jovens chegam sem parar à estátua do arquitecto da unidade nacional, que assiste àquele estranho movimento sem perder a postura. Há grupos organizados vindos dos mais diferentes pontos da cidade e até dos mais remotos distritos da província de Maputo, incluindo Namaacha, onde Edson foi entregue à Luz, em 1984.

O requinte com que as camisetes foram preparadas e o critério com que as rimas de Azagaia foram seleccionadas mostra que os admiradores se dedicaram a todo o gás a esta iniciativa. Mas a polícia tem gás para forçá-los a “dar gás” – gíria usada para referir-se à fuga. É o que acontece ainda ainda antes das 08:30h, hora em que a marcha, que iria desaguar na Praça da Independência, devia arrancar.

Numa autêntica “pulverização”, a Unidade de Intervenção Rápida (UIR) lança gás lacrimogénio sobre as massas indefesas. O que devia ser marcha lenta transforma-se de imediato numa corrida de gente atordoada que, perante a cegueira temporária provocada pelo gás, expõe-se a atropelamentos, não fosse a área em causa de muito tráfego.

Num instante, desfaz-se o ajuntamento, e a marcha que precisou de duas semanas de preparação revela-se uma miragem, sobretudo quando está Cídia Chissungo, uma das organizadoras, a dar indicações para “recuar” nas suas redes sociais, concretamente Twitter e Facebook. “Tudo que não queria era que alguém saísse ferido”, acabaria por justificar a sua acção, no final do dia.

Cenário de guerra

O desejo de Cídia Chissungo não se concretiza. Indiferentes à voz do comando, os jovens dispersados pela polícia reagrupam-se e improvisam um novo itinerário. Em vez da Eduardo Mondlane, usam 24 de Julho, outra das movimentadíssimas avenidas da capital moçambicana. Com indisfarçável revolta, gritam “Povo no Poder”, “Ladrões, Fora!”, num claro repúdio ao cerceamento da liberdade de manifestação, consignada no artigo 51 da Constituição da República.

Aquilo que se pretendia fosse uma marcha pacífica em homenagem ao autor dos álbuns Babalaze e Cubaliwa torna-se num protesto que dá azo à edição de um álbum de fotografias chocantes, porque revelam jovens a serem brutalmente espancados, outros com a face banhada de sangue porque foram atingidos pelos disparos da polícia, e alguns estatelados e inconscientes em plena via pública.

O cenário é de guerra, mas com forças desproporcionais. Enquanto a polícia tem todos os meios de combate – viaturas blindadas, armas, coletes à prova de bala, etc – a população defende-se apenas com palavras, porque, apesar do cenário hostil em que se encontra, não deixa que nada sufoque o grito de liberdade que explode na garganta. Mas também não cogita recuar.

É assim que se chega ao Jardim dos Madjermanes, na esperança de que a perseguição policial cessaria. Errado. Em pouco tempo, as forças policiais cercam o espaço e lançam mais gás lacrimogénio contra os manifestantes, que nem por isso respondem com violência. Nova dispersão se dá, mas ninguém se dá por derrotado.

Ataques indiscriminados e vandalismo

São quase 10h:30 e a “batalha” continua. Os jovens conseguem reagrupar-se e insistem em marchar, tendo como objectivo final chegar à Praça da Independência, onde tinham estado a 14 de Março, no velório de Azagaia. Em resposta, a polícia aumenta os níveis de violência e, mais do que isso, amplia o seu “público alvo”.

A dado passo, os ataques começam a ser direccionados a qualquer um que comete a ousadia de circular pela cidade. É assim que é atingida uma viatura ligeira de uma cidadã que, por sinal, estava acompanhada por uma criança. O carro não acaba “engolido” por chamas graças a pronta intervenção de populares, que debelam de imediato o fogo provocado pelo tiro da polícia.

Num show de depredação do património privado, o gás lacrimogénio é lançado também contra os prédios. O gás passa a ser a fragrância predominante nos apartamentos. São as forças de segurança a causarem insegurança às famílias nas suas próprias casas. “Foi uma falha”, justifica um agente da UIR quando questionado por uma cidadã atónita com o que vê.

Pelas 12 horas, a tensão baixa, com os vários jovens a arrepiarem caminho. O cenário, no entanto, está longe de ser o convencional, não só porque continuam ataques a pequenos grupos, mas também porque a cidade está tomada de carros de combate, colocados em locais estratégicos visando impedir o acesso à Praça da Independência, um lugar histórico rodeado de edifícios igualmente históricos, como é o caso da Catedral de Maputo, onde jovens que rezam “Ave Maria” são surpreendidos com disparos de gás lacrimogénio. Nossa Senhora!

Quelimane: o oásis no deserto da decência

Tal como na capital moçambicana, as marchas em homenagem ao músico Azagaia são reprimidas em Nampula, Vilankulo, Xai-Xai e Beira. No “Chiveve”, a estranha proibição é justificada com a “falta de condições operativas”. O que não falta são armas, blindados, gás lacrimogénio e, claro agressões e detenções, das quais nem o presidente da Assembleia Municipal escapa.

Em meio ao deserto de decência em que o país se transforma, há um oásis chamado Quelimane, capital provincial da Zambézia. Devastada recentemente pelo Ciclone Freddy, a urbe é “poupada” pela PRM. O normal vira excepção!

Repercussão gigante

A violência servida gratuitamente pelas forças policiais está a ter consequências que podem ser custosas à imagem de Moçambique, pelo menos a avaliar pelo tom das reacções que chegam de toda a parte. A Human Rights Watch pede investigação de alegadas violações perpetradas no âmbito do uso “desproporcional e desnecessário” da força para reprimir manifestações pacíficas. Já a Amnistia Internacional fala em um “acto ultrajante de policiamento infeliz contra manifestantes indefesos”.

Internamente, também há reacções e algumas vindas de membros do partido no poder, como é o caso de Samora Machel Jr, para quem os actos de sábado “violam a nossa definição constitucional como Estado de Direito Democrático”. “Esta violência de agentes do Estado contra os seus cidadãos é também uma traição aos valores e princípios fundamentais do partido que dirige o nosso Estado, uma traição às tradições gloriosas da Frente de Libertação de Moçambique de defesa dos interesses do povo moçambicano e uma traição à Frelimo como partido da paz e do diálogo”.

Em comunicado, a Associação Moçambicana de Juízes destaca que foram coarctados direitos inerentes à pessoa humana e lembra as entidades públicas e privadas que o respeito à Constituição vincula a todos.

*Texto publicado na edição 503 do Dossiers & Factos

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