– Ignorando vícios detectados por especialistas, Executivo enviou três propostas ao Parlamento
Recentemente, o Governo submeteu na Assembleia da República a Proposta de Lei de Base de Organização de Investigação Criminal, a Proposta de Revisão da Lei nº 16/2013, de 12 de Agosto (Lei da PRM) e ainda a Proposta de Lei de Revisão da Lei nº 2/2027, de 09 de Janeiro (Lei do SERNIC). As propostas em referência, as quais Dossiers & Factos teve acesso, enfermam de uma série de vícios de inconstitucionalidade e outros problemas legais devidamente identificados em pareceres elaborados por Conselhos Técnicos da Procuradoria-Geral da República (PGR). O Governo, no entanto, ignorou os pareceres, gerando preocupação entre os sectores atingidos.
Texto: Dossiers & Factos
Comecemos pela Proposta de Lei de Base de Organização da Investigação Criminal, cujo primeiro problema é o facto de não apresentar fundamentação, o que configura uma violação da Resolução Interna nº 2/95, de 13 de Junho, que impõe a necessidade de fundamentação dos instrumentos que visam a criação de normas.
O Conselho Técnico da Procuradoria-Geral da República, que examinou o documento, defende ser de “capital importância” a fundamentação para a compreensão da motivação da adopção do instrumento legal que se deseja ver aprovado.
Seguidamente, o Conselho aponta as disposições que entende serem de “constitucionalidade duvidosa”, a começar pelo artigo 4º da proposta, que define a Polícia da República de Moçambique (PRM) como “Órgão da Polícia Criminal”. Dito doutro modo, atribui-se a competência genérica no domínio da investigação criminal à PRM, o que é problemático, uma vez que a Constituição da República estabelece, no n.o 1º do artigo 253º, que são funções da PRM “garantir a lei e ordem, à salvaguarda de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos”.
“Da leitura do artigo 253º da CRM não se alcança que a PRM seja um órgão de investigação criminal”, chama atenção o parecer do Conselho Técnico, ressaltando que Órgãos da Polícia Criminal são as entidades que cooperam com as autoridades judiciárias na investigação criminal.
Separação de poderes em causa
Os artigos 15º e 16º, relativos à criação, composição e competências do Conselho de Coordenação, também suscitam preocupações. A proposta prevê que o referido Conselho seja presidido por membros do Governo, podendo ser composto ainda pelo presidente do Conselho Superior de Magistratura Judicial e pelo Procurador-Geral da República.
O Conselho Técnico encontra aqui potencial violação do princípio da separação de poderes, plasmado no artigo 134º da Constituição da República. Por outro lado, a proposta prevê, no nº1 do artigo 10ª, requisitos que fundamentam a prisão fora de flagrante delito, sem mandado judicial, distintos dos que constam do Código do Processo Penal (CCP), no seu artigo 300º. Acresce-se a isso o facto de tal disposição contrariar o artigo 59º da Constituição da República, que no nº 1 estabelece que “Na República de Moçambique todos têm direito à segurança, e ninguém pode ser preso e submetido a julgamento senão nos termos da lei”.
Propostas diferentes, mesmos vícios
Igualmente submetida a PGR para a necessária apreciação técnica foi a Proposta de revisão da Lei n.o 16/2013, de 12 de Agosto – Lei da PRM, que, na óptica do Conselho Técnico, também apresenta problemas, quer de natureza constitucional, quer de natureza processual. No plano Constitucional, o Conselho Técnico insiste que, na conjugação do já mencionado no no 1 do artigo 253º da CRM com o no 2 do artigo 254º, resulta claro que a PRM não tem competência de investigação de ilícitos criminais.
“Resulta evidente que o legislador constitucional não quis atribuir outras funções à PRM, pelo que jamais poderá o legislador ordinário legislar à margem dos ditames constitucionais”, sintetizam os autores do parecer técnico.
Já no plano processual, há receios de que ocorra o esvaziamento das competências do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC). É que a proposta prevê, por exemplo, a criação de uma Divisão de Investigação de Ilícitos Criminais com competências de direcção, organização, monitoria e elaboração de instruções metodológicas e directivas no contexto de investigações de ilícitos criminais. Caberá a esta divisão colher notícia de crimes e impedir as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova em todos os crimes cuja investigação não seja da competência de outros órgãos auxiliares.
Para os técnicos que analisaram o documento, a atribuição de competências investigativas a um órgão integrado na PRM (concretamente ao Comando Geral da PRM), ao arrepio da Constituição, afigura-se “estranha”, dado que “grande parte dos crimes a que aquela se propõe a investigar são da competência específica do SERNIC”.
Ademais, prossegue o Conselho Técnico, compete ao Ministério Público, conforme estatuído no artigo 235º da Constituição da República, comandar a instrução, “não se percebendo em que moldes a direcção da mesma [instrução] será em simultâneo efectivado pela divisão sugerida na proposta de Revisão da Lei da PRM.
Piscar à esquerda e virar à direita
Relativamente à Proposta de lei de revisão da Lei n.o 2/2017, de 9 de Janeiro, Lei do SERNIC, o Conselho Técnico constatou que o proponente (o Governo) diz uma coisa e, no entanto, faz outra. Ou seja, logo na fundamentação, o Executivo justifica a pertinência da revisão, entre outros motivos, pela necessidade de acomodar novas unidades orgânicas especializadas, às quais, de entre outras funções, caberão a prevenção e combate ao branqueamento de capitais, terrorismo e seu financiamento e recuperação de activos.
Ao invés disso, porém, a proposta não só não estabelece novas unidades orgânicas especializadas, como deixa de fora vários aspectos introduzidos, sobretudo, pelo novo Código de Processo Penal, bem como trata de outras matérias não referidas na fundamentação, pontuam os examinadores.
De resto, e segundo dá conta o parecer técnico, refere-se na fundamentação que são revistos os artigos 6º, 20º, 22º, 24º e 27º. Mas, na prática, propõe-se a revisão de 51 dos 53 artigos da actual Lei.
“Gera ainda preocupação o facto de desvirtuar, sem a necessária justificação, a natureza do SERNIC como tal prevista no número 1 do artigo 3º da lei da criação, fazendo perder, na proposta, a sua definição de serviço público de investigação criminal”.
No entendimento do Conselho Técnico, a proposta também retira autonomia administrativa ao SERNIC, passando aquela entidade a gozar de maior ingerência na gestão corriqueira do órgão, como a prática de actos administrativos, admissão de pessoal técnico administrativo e paramilitar; aprovação de plano e orçamentos, entre outros.
“Por conta disso, o director-geral do SERNIC, nos termos da proposta, praticará actos não definitivos, carecendo de ratificação do ministro [do Interior], o que afronta a autonomia administrativa do órgão, transformando-o numa entidade subordinada, integrada por conseguinte, na orgânica do Ministro do Interior”, lê-se no parecer técnico.
Contribuições olimpicamente ignoradas
Sem excepção, os três pareceres emitidos pelos técnicos da PGR apontam os aspectos considerados problemáticos e sugerem alterações a serem introduzidas nas propostas, de modo a que as mesmas se conformem com a legalidade.
No entanto, foram todas ignoradas pelo mesmo Governo que, por via do Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, solicitou os pareceres técnicos junto à PGR. Já no Parlamento, onde a Bancada Parlamentar da Frelimo detém maioria absoluta, é muito provável que estes instrumentos sejam aprovados com os vícios de que enfermam.