Numa área em que tantas vezes os operadores são apontados como desonestos, surge um dossier em que o Estado moçambicano poderá ter adoptado comportamentos no mínimo questionáveis. Trata-se de um caso com contornos inusitados, em que a Agência Nacional para o Controlo da Qualidade Ambiental (AQUA) apreendeu e leiloou ilegalmente mais de 400 metros cúbicos de madeira pertencente à empresa HJ Importação a um preço supostamente muito abaixo do valor do mercado, pelo que a empresa queixa-se de perseguição e aponta para a existência de interesses inconfessáveis.
Texto: Dossiers & Factos
A história que coloca a HJ Importação e o Estado moçambicano em lados opostos começa a 10 de Dezembro de 2022, dia em que a AQUA, ao nível da província de Sofala, afirma ter surpreendido a empresa a fazer o empacotamento de madeira em toro em contentores de 40 pés. Na ocasião, a AQUA terá ordenado que os trabalhos de empacotamento cessassem, alegando desrespeito dos procedimentos para o efeito.
Segundo consta do ofício nº 331/DPAQUAS/GD/2022, através do qual a Procuradoria-Geral da República-Sofala tomou conhecimento do sucedido, em resultado da alegada infracção foi aplicada à HJ Importação uma multa no valor de 10 milhões de meticais e a madeira apreendida.
Em termos globais, e segundo consta dos registos, foram apreendidos 45 contentores contendo várias espécies de madeira, entre elas “pau-preto (26 contentores) ” e “chacate preto (19 contentores) ”.
Recurso negado
A apreensão da madeira pela AQUA baseou-se no pressuposto de que a empresa estaria a exportar/importar produtos florestais ou faunísticos sem autorização da instituição de tutela, o que, de acordo com a alínea d), nº 2, artigo 1 do Decreto nº 76/2011, de 30 de Dezembro (Estabelece os princípios e normas básicas sobre a protecção, conservação e utilização sustentável dos recursos florestais e faunísticos), constitui infracção punível com multa.
A HJ não se conformou com a medida, tendo, por isso mesmo, impugnado a mesma. Em resposta, a AQUA viria a solicitar, em Novembro de 2022, cópias das guias e outros documentos comprovativos de entrada dos produtos no estaleiro da empresa, assim como o documento de pedido de autorização para movimentação da madeira submetido ao Serviço Provincial do Ambiente (SPA).
Dados constantes do dossier na posse do Dossiers & Factos evidenciam que, no mês seguinte, Dezembro, a empresa enviou à AQUA as cópias das guias de trânsito de produtos florestais e respectivas licenças emitidas a favor dos operadores que tinham dado entrada em seu estaleiro, bem como a cópia do extracto de registo de entradas de produtos florestais no estaleiro.
Entende-se que a impugnação apresentada pela empresa HJ visava, na verdade, evitar que o produto apreendido fosse vendido em hasta pública, até porque, a 15 de Maio de 2023, a PGR em Sofala era comunicada, pela AQUA, dessa intenção, tendo inclusivamente recebido o respectivo edital. A estratégia, no entanto, falhou.
De seguida, a empresa recorreu ao Tribunal Administrativo para requerer a suspensão de eficácia do acto administrativo da AQUA naquela província, no caso o anúncio da venda em hasta pública da madeira apreendida nos estaleiros da empresa HJ. No entanto, ao que se sabe, o máximo que a empresa recorrente conseguiu foi adiar o acto enquanto o processo corria os seus termos, uma vez que o Tribunal Administrativo acabaria por negar provimento ao pedido, o que levou a que a madeira fosse, contra as expectativas do proprietário, efectivamente, vendida.
Venda ao desbarato num processo “secreto”
Com o pedido de suspensão da eficácia do acto administrativo da HJ, chumbado pelo TA, a AQUA tinha caminho livre para proceder à venda da madeira em hasta pública, e fê-lo num processo que, de acordo com nossas fontes, terá sido gerido com um “secretismo suspeito”.
“Não foi permitido a ninguém assistir, inclusivamente a parte interessada queria participar mas não lhe foi permitido, sequer a deixaram entrar”, denunciam as fontes.
Entretanto, mais do que o alegado secretismo com que o processo terá sido conduzido, a questão que mais salta à vista está ligada ao preço aplicado para a venda da referida madeira. É que, a AQUA fixou o valor em 2.867.302,50MT (dois milhões, oitocentos e sessenta e sete mil, trezentos e dois meticais e 50 centavos), quando, segundo as fontes, o valor do mercado à data dos factos (terceiro trimestre de 2023) para a quantidade e tipo da madeira variava entre os 18 a 20 milhões de meticais.
Para as nossas fontes, a subvalorização do produto por parte da AQUA, associada ao facto de a venda ter sido supostamente feita envolto em ocultismo, levanta suspeitas de que havia pretensão de beneficiar a empresa que acabaria por adquirir a madeira. “Note-se que, em sede do referido concurso para venda em hasta pública da madeira apreendida nos estaleiros da HJ, não se abriu espaço para que outros concorrentes pudessem manifestar interesse e submeter as suas propostas, tudo porque já existia um destinatário pré-identificado”, lê-se no recurso hierárquico da empresa, submetido na AQUA central, na cidade de Maputo.
Diligências fora da hora do expediente
A empresa apontada como “destinatário pré-definido” chama-se HT Serviços, Lda. Tendo ganhado o concurso, a referida firma ter-se-á deslocado ao estaleiro da HJ, no dia 11 de Agosto de 2023, onde terá exigido a entrega imediata do produto (a madeira), o que não aconteceu devido à resistência dos representantes da HJ, que alegadamente terão sido notificados via telefone.
A razão da resistência, para além da notificação via telefónica, prende-se, segundo a HJ, com o facto de os representantes da HT se terem feito ao estaleiro às 16:30h, portanto, fora do horário normal do expediente.
No entanto, na mesma ocasião, a HJ garante que aconselhou a congénere (HT) e os fiscais da AQUA a voltarem na semana seguinte, concretamente na segunda-feira, 14 de Agosto, data em que consumou-se o carregamento da madeira por parte da empresa licitada, “apesar dos vícios”.
Arrombamento e retirada compulsiva da madeira
Ainda que a HT já estivesse em posse dos 45 contentores de madeira, deslocou-se, no dia 01 de Setembro de 2023, novamente às instalações da HJ para executar um mandado que determinava a busca e apreensão de mais 109,32 metros cúbicos de madeira de espécie pau-preto. Nessa altura, a HJ não estava em funcionamento porque decidiu conceder férias colectivas aos seus profissionais, à excepção dos seguranças.
Foram, aliás, segundo documentos constantes do dossier, os seguranças que impediram que a madeira fosse retirada do estaleiro pela equipa da HT, que se fazia acompanhar por agentes da AQUA, SERNIC e da PGR. Sem sucesso no primeiro dia, a mesma equipa retornaria nos dias 02, 03 e 04 de (sábado, domingo e segunda-feira), tendo efectivamente executado o referido mandado, emitido pelo Tribunal Judicial do Distrito de Dondo. Facto curioso é que a entrada, de acordo com a HJ, terá se dado por via do arrombamento, visto que não estava no local nenhum responsável da empresa com competência para autorizar a abertura das instalações.
Acto contínuo, segundo os documentos que temos vindo a citar, a HJ também apontou defeitos ao mandado de busca e apreensão. “O referido documento, apesar de assinado pelo juiz presidente do Tribunal Judicial de Dondo e carimbado, não indica o número dos autos que alegadamente corre termos naquele juízo”, relata a empresa, acrescentando não ter sido notificada para os termos do eventual processo, que considera inexistente.
A PGR, por sua vez, argumenta que, após o carregamento do primeiro lote de 45 contentores, a empresa licitada terá constatado a falta de 188.06 metros cúbicos de madeira, o que levou a que pedisse a “reposição da legalidade por desobediência da empresa HJ”.
HJ ganha recurso hierárquico e deixa PGR desesperada
Inconformada com a forma como o processo foi conduzido, a HJ avançou para a Direcção Geral da AQUA, onde apresentou Recurso Hierárquico. No referido documento, a empresa solicita a anulação da multa que lhe foi aplicada (10 milhões de meticais), por considerá-la “manifestamente injusta e ilegal”.
Pela primeira vez nesta longa “novela”, o recurso da empresa foi julgado procedente, resultando na revogação da multa, o que deixou a PGR-Sofala com nervos à flor da pele. Em ofício enviado à AQUA-Sofala, a instituição defende que a Direcção Geral da AQUA deve revogar a sua decisão,