“O Papel do Ministério Público no Estado Moçambicano” esteve em debate na última quarta-feira, 18 de Setembro, nas instalações da Procuradoria-Geral da República (PGR), na cidade de Maputo. Numa mesa redonda moderada pelo antigo PGR Augusto Paulino, Taibo Mucobora, Manuel Vicente Castiano, Alberto Nkutumula e Joaquim Madeira apresentaram as linhas que, na sua opinião, devem nortear a actuação do Ministério Público (MP). Joaquim Madeira foi o primeiro e sublinhou que, num estado de direito, “só tem direito quem direito anda”
Texto: Milton Zunguze
O Juiz conselheiro do Tribunal Supremo, que liderou a PGR de 2000 a 2007, teve uma abordagem centrada nas atribuições do MP, uma magistratura hierarquicamente organizada e subordinada à PGR. Entre as elas, destacou a representação do Estado junto dos tribunais; a defesa do interesse público, de menores, ausentes e incapazes; o combate à criminalidade; o exercício da acção penal e o zelo pela observância da legalidade.
Sublinhou que a acção deste órgão não se esgota nos tribunais, o que ainda amplia a sua intervenção na sociedade. “O MP é zelador da sociedade, pacificador que luta para que a sociedade seja dirigida segundo a lei e não segundo simpatias e antipatias dos homens”, afirmou, destacando que o MP concorre para a estabilização do Estado e para construir confiança em torno deste.
Tal desiderato, explicou Joaquim Madeira, só é possível com a sujeição à Lei, que é isenta de paixões. A par da observância da legalidade, o juiz conselheiro do Supremo, que em diferentes momentos usou sua própria carreira como exemplo, destacou a necessidade de os actores do MP e da justiça no geral deixarem-se guiar por um conjunto de virtudes, nomeadamente coragem, isenção, humildade e honestidade.
“Temos que ser sérios e parecermos honestos”, vincou Joaquim Madeira, salientando que só assim se poderá perceber que ninguém está acima da Lei e que “num estado de direito só tem direito quem direito anda”.
Não é papel do MP violar presunção de inocência
Numa altura em que o aumento do crime e da criminalidade, sobretudo a criminalidade organizada e transnacional, levaram a um reposicionamento do MP, Manuel Vicente Castiano, que integrou o painel de oradores em representação da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), problematizou uma série de situações que, na sua perspectiva, podem concorrer para a violação do sagrado princípio da presunção de inocência, particularmente no âmbito do combate aos crimes de branqueamento de capitais e enriquecimento ilícito.
Um dos exemplos trazidos ao lume tem que ver com o facto de as instituições financeiras e não financeiras poderem suspender operações [financeiras, pois claro], reportando-as a posterior ao MP e ao Gabinete de Informação Financeira (GIFIN), desde que haja “funda suspeita de tal operação constituir crime”.
O docente de direito na Universidade Eduardo Mondlane (UEM) e no Instituto Superior de Ciências e Tecnologias de Moçambique (ISCTEM), questiona a capacidade dessas instituições para aferirem se há ou não “suspeita fundada”. “A pergunta que se faz é se têm essas instituições literacia suficiente para confirmarem a existência de uma “fundada suspeita” ou voltamos à velha máxima de suspender para investigar indícios?”.
O mesmo problema se levanta em relação ao congelamento de fundos e bens ligados a terroristas, organizações terroristas ou entidades associadas ou que pertençam a tais organizações. Castiano não apenas coloca em causa o congelamento que pessoas que sequer constam da lista das entidades designadas na legislação, como condena o facto de, muitas vezes, tal procedimento ocorrer sem a audição prévia do titular dos fundos.
“Parece que estamos numa presunção de culpa, em que o indivíduo deve provar sua inocência”, concluiu, sublinhando não ser papel do MP violar o princípio da presunção de inocência, “que deve ser respeitado em todo o processo”.
Isto dito, o docente, que é formador na Associação Moçambicana de Juízes (AMJ), no Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ) e no Centro de Formação Jurídica-Judiciária, defende ser crucial garantir o equilíbrio entre o dever de investigar e o respeito pelos direitos do cidadão. Por isso mesmo, defende ser premente reflectir sobre o papel do MP, sobretudo em momentos de crise, como o que actualmente se vive.
“Hoje há pressões [sobre o MP] por causa da inclusão do País na lista cinzenta, pelo que todo País está mobilizado para ver se saímos da lista”, assinalou, antes de sublinhar que o MP tem de ser o garante da legalidade.
“Dirigir é aplicar a lei”
Em torno do mesmo tema debruçou-se o procurador-geral adjunto, Taibo Mucobora, que destacou o papel do MP na realização da Justiça e consequente concretização cabal dos objectivos do Estado.
O antigo director das Faculdades de Direito e Economia da UEM sublinhou que o MP, na sua qualidade de advogado do Estado, tem legitimidade para levar a cabo acções de responsabilidade civil decorrentes da gestão pública, aproveitando para clarificar que o poder discricionário não dispensa a observância da Lei.
“Alguns [dirigentes] dizem que eu tenho o poder discricionário, mas o poder discricionário é escolher entre as opções que a Lei dá. Não é trazer suas ideias. Quando acontece o contrário, o MP tem legitimidade para propor acções em defesa dos interesses colectivos e difusos e é o que tem acontecido. O MP pratica esse papel em defesa do meio ambiente, da qualidade de vida, do património cultural, etc.”.
Mais adiante na sua alocução, o magistrado chamou atenção para a existência de incompatibilidade entre os vários papéis adstritos ao MP, havendo, nesses casos, que abdicar do seu exercício simultâneo.
“Quando um polícia dispara na salvaguarda da ordem pública e atinge uma criança, os pais vão ao tribunal submeter uma acção indemnizatória. Nós respondemos representando o Estado, mas também a Constituição diz que temos que defender o menor… fica uma penumbra. Para dizer que há situações em que, em claro conflito, o magistrado deve se abster de actuar”, afirmou.
“IA pode não ter culpa, mas as pessoas podem ser responsabilizadas”
Por sua vez, o académico e docente de direito na UEM, Alberto Nkutumula falou da necessidade de o MP se adaptar aos avanços da Inteligência Artificial (IA), cada vez mais usada para várias acções antes executadas directamente pelo homem.
É necessário, segundo o antigo ministro da Juventude e Desportos, que o MP se prepare para eventuais situações em que a IA é usada para o cometimento de crimes. Deu exemplo do Reino Unido, onde alegadamente uma máquina terá sido usada para matar pessoas sem que haja responsabilização.
Na sua opinião, as máquinas até podem ser inimputáveis, mas o homem que as cria e programa pode claramente ser responsabilizado, sendo que, para tal, as instituições de direito, como é caso do MP, devem estar preparadas.
O debate em torno do papel do MP no Estado Moçambicano insere-se nas actividades comemorativas dos 35 anos da PGR, sob lema “PGR: 35 anos defendendo a legalidade em prol da consolidação do Estado de Direito Democrático”