O processo eleitoral continua a ser o grande tema do momento em Moçambique, com críticas quase generalizadas aos resultados divulgados pelos órgãos eleitorais, que dão vitória a Daniel Chapo e ao partido Frelimo. Algumas dessas críticas partem mesmo de dentro da própria Comissão Nacional de Eleições (CNE). A principal voz do órgão contra os resultados é de Fernando Mazanga, que acredita que os mesmos não reflectem a vontade popular. O vice-presidente da CNE responsabiliza um “punhado” de vogais da CNE pelo caos que o País vive, uma vez entender que resta do respaldo que estes deram àquilo que chama de “martelanços” do Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE), onde alegadamente se dá a adulteração dos números.
Texto: Seródio Towo
Dossiers & Factos (D&F): Que análise faz da situação política do País, olhando para a componente eleições gerais recentemente realizadas?
Fernando Mazanga (FM): Obrigado pela questão. Devo dizer que a voz que está a aparecer é de Mazanga, mas o sentimento é de muita gente na Comissão Nacional de Eleições (CNE). Estou a falar não só de pessoas que vieram da Renamo, mas até de pessoas que vieram da Frelimo, do MDM e da Sociedade Civil, porque quem está a fazer isso é um número minúsculo dentro da CNE e está a apadrinhar as falcatruas do STAE, porque o epicentro de tudo isto é o STAE. O STAE faz e manda para a CNE, e a CNE, através de pessoas muito influentes e com poderes do lago dos que vieram da Frelimo, acaba até intimidando outros que vieram da Frelimo e acabam por votar a favor de uma coisa que eles depois vêm dizer a mim para que eu denuncie. Portanto, eu estou a agir como porta-voz de pessoas a quem eu chamo de liga do bem, é uma liga invisível lá na CNE. Quando nós formos a analisar todo o País, sinto uma carga negativa porque eu reconheço que tudo que está a acontecer no País está a ser originado pelos resultados que a CNE aprovou. Aliás, estou a falar do voto da maioria, porque eu e mais outros colegas votamos contra estes resultados e fizemos declaração de voto denunciando vários atropelos à Lei e aos procedimentos de como deve ser feito o apuramento a partir do distrito. E eu recuo para o recenseamento de 2023, bem como o próprio apuramento das eleições autárquicas. Se está recordado, nessas eleições, os resultados que saíram da CNE davam a totalidade dos municípios ao partido Frelimo. E nós discordamos e fizemos declaração de voto e elencamos as razões. O assunto foi ao Conselho Constitucional, que encontrou motivos para, pelo menos, devolver quatro municípios e alguns assentos na cidade de Maputo. Para dizer que os colegas que andam a teimar em votar a favor dos resultados fraudulentos o STAE traz são os que criam a desestabilização do País. O País está a sofrer. Há pessoas que estão a morrer, a ficar doentes, há pessoas que estão a ficar desavindas nas suas famílias por causa de irregularidades eleitorais que acabam até por prejudicar o próprio partido deles e o respectivo candidato.
D&F: Prejudicam de que forma?
FM: Prejudicam porque, neste momento, estão em parampas, não sabem se ganharam ou se perderam. Não há como quantificar estes resultados eleitorais, justamente porque estão cheios de erros e impreci sões. Há vídeos e pessoas que testemunham a questão dos enchimentos. Há pessoas que foram flagradas que neste momento estão a responder em tribunal. Então, no cômputo geral estas eleições não foram livres, justas e transparentes. De transparentes não tiveram nada. E, de forma cobarde, a CNE empurrou o assunto para o Conselho Constitucional. Só que o Conselho Constitucional, quando se depara com o resultado que é enviado, encontra a questão de as actas e editais originais não terem constado no dia do apuramento. E é por isso que solicitou à CNE, que deliberasse sobre estes resultados. A deliberação destes resultados não foi feita pelo presidente da CNE, foi feita pela plenária, pelo que qualquer tipo de solicitação por parte do Conselho Constitucional deve ser respondida pela plenária e a convocação da plenária é feita pela mesa, composta pelo presidente e pelos dois vice-presidentes. Eu não fui tido, nem achado para se saber o que é que vai como resposta sobre as discrepâncias nas três eleições. Este documento foi feito sem o meu conhecimento na mesa.
“O STAE chegou a esconder os resultados”
D&F: Sabe por quê foi excluído?
FM: Eu já tinha manifestado perante o presidente a vontade de saber qual é o documento que vai ao Conselho Constitucional como resposta, porque eu posso ter meus pontos de vista. Eu disse até ao presidente que a esta pergunta [sobre discrepâncias] não há ninguém que possa responder de forma peremptória. Isto vem testemunhar, como hipótese, a questão dos enchimentos. Então é esta resposta que deveria merecer uma reflexão profunda, e não coisas feitas a correr, porque o STAE, para poder encobrir as suas falcatruas, sempre traz as propostas para deliberação em última hora, quando está estipulado que os membros da CNE devem receber o expediente em tempo suficiente para poder analisar e até fazer consultas e se posicionar como deve ser. Mas os documentos chegam tarde, sobretudo os resultados. Os membros da CNE tomaram conhecimento dos resultados naquele momento através de projecção, não de documento físico. Como é possível, se a própria Lei estabelece que tem de haver actas e editais para se fazer a comparação? Mas o STAE, que é subordinado da CNE, recusou-se a entregar os documentos. O STAE chegou a esconder os resultados.
D&F: Fernando Mazanga, disse que havia um pequeno punhado de gente que está em conivência com o STAE para deturpar a informação. Quantas pessoas são, concretamente?
FM: Eu prefiro falar de um punhado, porque eu disse que nós, maioritariamente, todos que viemos da oposição, incluindo algumas pessoas que vieram da Frelimo, não concordamos com este procedimento. Mas aqueles [da Frelimo], por disciplina partidária, acabam por alinhar no momento da votação.
D&F: Quantos são?
FM: Não posso precisar os números, isso seria clarividente demais.
D&F: Pedimos um número aproximado.
FM: Não passam de seis.
D&F: Está a dizer que o País está a viver momentos políticos difíceis devido ao comportamento de mais ou menos seis pessoas dentro da CNE?
FM: São esses que defendem as falcatruas, as marteladas do STAE. Os resultados vem do STAE. Portanto, significa ue aquela gente que se comporta desta maneira do outro lado é poderosa a ponto de influenciar os outros para que alinhem no momento da votação. E depois, porque todos já nos conhecemos, dizem-nos em comversas de café que “isto não pode ser assim”.
D&F: Perante esta situação, qual é a saída que o País pode encontrar?
FM: Neste momento em que o dossier está no Conselho Constitucional, não seria ético da minha parte avançar qualquer tipo de solução, sob pena de estar a influenciar a reflexão, a análise. Tenho que respeitar e dar espaço ao órgão para poder reflectir e tomar a sua decisão. O que me cabe a mim é falar daquilo que não andou bem e da forma como deveria ter andado. Eu, ainda hoje, vou submeter minha reclamação ao Conselho Constitucional em relação à forma como foi enviada a resposta da CNE sobre as discrepâncias, porque, mais uma vez, atropelou-se os procedimentos. O Conselho Constitucional deu-nos 72 horas para responder à questão das disparidades, o presidente da CNE baixou para o autor material disto tudo, o STAE, para dar a sua justificação sobre como é que houve estas disparidades. E o STAE, por sua vez, foi fazer o trabalho com uma comissão onde estão representadas as três forças políticas, e que analisaram e fizeram uma proposta que deveria passar para a Comissão de Assuntos Legais e Deontológicos. Que vê os aspectos legais. Dali, deveria vir para a mesa, da qual faço parte. Então, analisados na mesa, decidiríamos se partilhavamos ou levávamos à plenária, porque trata-se de matéria solicitada à plenária. Não tendo sido seguidos estes procedimentos – eu só ouvi através da comunicação social e das redes sociais – pretendo dizer ao Conselho Constitucional (CC) que não foram seguidos os procedimentos. Esta é uma minha contribuição, a bem da verdade
D&F: Disse que não pode dar a sua opinião sob pena de poder influenciar o Conselho Constitucional, mas, podendo haver esse espaço, qual seria a melhor saída?
FM: Depois do Conselho Constitucional se pronunciar, talvez poderei dizer. Agora não, não posso fazer isso, não é ético.
D&F: Imagine que o Conselho Constitucional opta pela anulação das eleições, estaria no caminho correto, no seu entender?
FM: Eu respeitarei tudo aquilo que for decisão do Conselho Constitucional.
D&F: Falou de vários atropelos à lei que nos empurraram para o caos, mas agora diz que respeitará qualquer que seja a decisão do CC. Não entende que está a ser contraditório ou, pelo menos, a ficar em cima do muro?
FM: Não estou a ficar em cima do muro, posso saber as verdades, cabe ao Conselho Constitucional apurar, porque não sou o único interlocutor válido. Vai ouvir várias sensibilidades e vai se posicionar. E, sendo um órgão que decide em última instância sobre essas matérias, todos nós vamos nos sujeitar àquilo que for a decisão do CC.
“Desprezou-se o voto popular”
D&F: Se o Conselho Constitucional manter os resultados anunciados pela CNE, que cenário se pode antever no País?
FM: Bom, eu não gosto de ser futurista. Mas se trabalharmos com base nos resultados produzidos pela CNE, então não estaremos a falar a verdade. Agora, se o CC disser que estes são os verdadeiros, eu vou continuar a dizer que os resultados que foram passados pela CNE não correspondem à verdade daquilo que foi o voto popular. O que aconteceu é que desprezou-se o voto popular. As pessoas foram às urnas, foram votar e esse voto foi deitado fora através de um voto de 17 elementos que estavam no ar condicionado na CNE, a tomar café e sumos.
D&F: Porque é recorrente a reclamação dos partidos na oposição em todos os pleitos eleitorais, e como bem disse há bocado, o problema sempre nasce do STAE, cresce para a CNE e depois é homologado pelo Conselho Constitucional, o que é que acha que deve ser revisto para que estes problemas todos não voltem a acontecer no futuro?
FM: A Lei precisa ser melhorada, porque por um lado diz que o STAE é subordinado a CNE, mas por outro lado diz que o STAE tem autonomia patrimonial e administrativo e tudo mais, portanto, ao mesmo tempo que diz que é subordinado, dá-lhe poderes de agir independente da CNE. O STAE funciona como uma unidade autónoma CNE, só vai à CNE para receber o carimbo, pura e simplesmente. Se você for verificar, mesmo em termos de bens de circulação, pode ver que o presidente da CNE é muito inferior aos recursos que o director provincial do STAE tem. O membro da Comissão Provincial das Eleições (CPE) é muito inferior àquilo que os técnicos do STAE, os directores do STAE têm, portanto significa que é um empregado que consegue ter maiores possibilidades do que o próprio chefe. Mesmo para poder fazer a sua supervisão, a CPE ou a CDE não têm meios. O STAE é um todo-poderoso, é lastimoso mesmo ver um presidente da CPE ou CDE a ir mendigar para um director do STAE para ter dinheiro de combustível para fazer a supervisão. Portanto, o primeiro passo a ser dado para a melhoria é a subordinação efectiva do STAE, tem que ser mesmo um braço técnico e não ter essas autonomias todas que são dadas para. É preciso retirar essa autonomia do STAE. O STAE, muitas vezes, diz que faz parte do Estado e que as suas decisões devem ser tomadas de acordo com o estatuto geral dos funcionários do Estado, e isto limita a acção da CNE, CPE e CDE. Se for a reparar nas competências e nos poderes, o director do STAE tem capacidade de poder destituir um director provincial, distrital, mas o presidente da CNE já não tem competências. Por outro lado, os da CNE têm poderes muito limitados, pois embora a Lei diga que é um órgão do Estado independente de todos os poderes públicos e privados e que tem orçamento e património próprios, se formos a verificar na prática, esta CNE não tem autonomia financeira. O plano do orçamento que a Assembleia da República (AR) aprova para a CNE ainda tem que ir para o Ministério da Economia e Finanças (MEF) e fica lá.
Texto extraído na edição 587 do jornal Dossiers & Factos