Moçambique e Angola têm muito em comum, desde a heróica luta que pôs fim ao jugo colonial português aos recursos abundantes cuja exploração pouco beneficia a maioria das respectivas populações. Entretanto, nos últimos anos, os pontos de contacto entre os dois países multiplicaram-se ainda mais, graças aos seus respectivos Presidentes, que comungam uma história de fracassos e “traições”.
Texto: Amad Canda
Colonialismo português, luta de libertação nacional apoiada pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), guerra civil após a independência, recursos naturais (petróleo e gás, por exemplo) que apenas beneficiam elites políticas e o grande capital internacional. Os pontos de intercepção entre Moçambique e Angola são inúmeros e tendem a aumentar nos últimos anos, muito por culpa das suas actuais lideranças máximas, Filipe Jacinto Nyusi e João Lourenço (JLO), respectivamente.
“Traição” aos mestres
Em fim do seu segundo e último mandato, o Presidente moçambicano chegou ao poder, em Janeiro de 2016, pela mão do seu antecessor, Armando Guebuza, que antes o tirara dos Caminhos de Ferro de Moçambique (era director executivo do CFM-Norte) para atribuir-lhe o estratégico pelouro da Defesa Nacional.
Analistas políticos chamavam-lhe “delfim de Guebuza” nos seus primeiros anos de mandato, tal era a proximidade entre ambos, mas a gestão do dossier “Dívidas Ocultas” rapidamente arruinou essa relação, abrindo fissuras também no seio do partido Frelimo. Guebuza nunca escondeu a convicção de que a forma como foi conduzido o processo 18/2019-C, que culminou com a condenação de seu filho — Ndambi Guebuza — e de proeminentes figuras dos serviços secretos próximas a si, consubstancia uma “perseguição política” levada a cabo pelo actual regime. Em 2020, chegou a chocar os moçambicanos ao afirmar que não confiava na Procuradoria-Geral da República (PGR).
Ora, quem também deixou de confiar na PGR foi a família “Dos Santos” logo após a ascensão de João Lourenço ao cargo de Presidente de Angola, em 2017. JLO elegera, no seu discurso de tomada de posse, o combate à corrupção como prioridade máxima, mas a actuação da justiça angolana foi dando sinais de que, afinal, apenas a corrupção praticada pela família do falecido José Eduardo dos Santos interessa combater.
O repentino surgimento de processos contra o clã Dos Santos, especialmente visando a milionária Isabel dos Santos, ao mesmo tempo que a crítica angolana denunciava impunidade de outros membros da elite política igualmente corruptos, cimentou a ideia de perseguição política. “Em Angola, o procurador, portanto, o general Pitta Grós, recebe ordens directamente do general Lourenço, do presidente João Lourenço. Então, qualquer ordem desse tipo é uma ordem directa do Presidente”, afirmou Isabel dos Santos, em 2022, numa entrevista à CNN Portugal.
Vale ressaltar, a título de curiosidade, que, tal como Nyusi em Moçambique, JLO foi ministro da Defesa em Angola, tendo igualmente chegado ao poder por indicação de José Eduardo dos Santos, que governou aquele país por longos 38 anos.
Países na bancarrota
À sua chegada aos mais altos cargos de Moçambique e Angola, Nyusi e JLO fizeram promessas que alimentaram as esperanças dos respectivos povos num futuro risonho, de prosperidade e bem-estar. A realidade, porém, contrasta frontalmente com os discursos iniciais. Os dois países lusófonos enfrentam enormes dificuldades e, em determinadas matérias, estão ainda piores do que estavam.
Na Pérola do Índico, é o próprio Governo que assume, na Estratégia Nacional de Desenvolvimento (ENDE 2025-2044), que a pobreza aumentou 87% em dez anos, atingindo, em 2022, cerca de 65% da população. A isso soma-se a “falência” do Estado que, desde a introdução da Tabela Salarial Única (TSU), em 2022, não consegue sequer pagar salários em tempo útil aos mais de 300 mil quadros da Função Pública, violando sistematicamente o diploma ministerial n.º 210/2014, de 9 de Dezembro, sobre os procedimentos para o processamento e pagamento de salários aos Funcionários e Agentes do Estado (FAE).
Em terras da Palanca Negra, a situação não é diferente. Os salários na Função Pública deixaram de ter data, com a ministra das Finanças, Vera Daves de Sousa, a justificar a situação com a pressão do serviço da dívida. É que, tal como Moçambique, Angola é um país altamente endividado. Em 2023, por exemplo, a dívida pública local cresceu 11,46%, atingindo USD 80,61 mil milhões, um nível considerado insustentável pela generalidade da crítica angolana.
Condicionados pelo serviço da dívida, Moçambique e Angola, de Nyusi e JLO, respectivamente, não dispõem de recursos para investir na “economia social”, o que coloca sectores como Educação e Saúde numa situação de abandono, como têm denunciado, em ambos os países, as respectivas organizações sindicais.
Partidos no auge da impopularidade
A história de Filipe Nyusi e João Lourenço dificilmente será dissociada da fase menos boa que a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) atravessam. É sob sua direcção que os históricos partidos atingiram aquilo que poderão ser os mais altos níveis de impopularidade desde a sua criação.
Mais do que as cada vez mais frequentes manifestações populares contra a governação, essa impopularidade é demonstrada pelo desempenho nas eleições, que tende a piorar. Nas últimas eleições gerais, em 2022, o MPLA de JLO ganhou pela margem mínima, conquistando os modestos 51% dos votos, 10% abaixo do resultado alcançado em 2017. Para piorar, a sociedade angolana não ficou convencida da vitória do MPLA, num contexto em que várias contagens paralelas davam vitória à União Nacional para a Independência de Angola (UNITA).
Semelhantes episódios foram assistidos em Moçambique nas eleições autárquicas de 2023, com a Renamo a reivindicar vitórias em municípios importantes e outrora tidos como zonas de influência do partido no poder.
A relação com quem lhes abriu as portas do poder, a governação manchada pela crise salarial e a queda de popularidade dos partidos de que são presidentes fazem de Nyusi e JLO, que dirigem “países irmãos”, duas faces iguais de moedas diferentes, “gémeos siameses” fisicamente distantes.
*Extraído da edição 579 do Dossiers & Factos