A biodiversidade é o alicerce da saúde dos ecossistemas e da qualidade de vida no meio ambiente. A preservação dessa diversidade é crucial para garantir e fortalecer a resiliência dos ecossistemas frente às mudanças climáticas e aos impactos das actividades humanas. Em Moçambique, a situação é preocupante: frequentemente, os limites da “mãe natureza” são ignorados, resultando em construções desordenadas, abate de mangais e falta de protecção legal para várias espécies. Dossier Económico conversou com o ambientalista Carlos Serra para entender melhor os desafios e contornos da biodiversidade no país. Serra reconheceu os esforços realizados e a evolução desde a era colonial até aos dias actuais, especialmente no que tange à legislação ambiental. No entanto, destacou a necessidade de ampliar a protecção legal para incluir uma maior diversidade de espécies, além daquelas que já se encontram nas áreas de conservação.
Texto: Milton Zunguze
Em conversa exclusiva com o Dossier Económico, o ambientalista Carlos Serra descreveu a evolução da biodiversidade em Moçambique, apesar dos desafios enfrentados. Ele destacou que a biodiversidade começou a diminuir drasticamente com a introdução de armas de fogo, que substituíram as técnicas tradicionais de caça durante as duas principais guerras que o país enfrentou: a guerra de libertação e a guerra civil. “A biodiversidade começou a reduzir drasticamente com a entrada de armas de fogo, que vieram substituir as técnicas tradicionais de caça”, afirmou Serra.
“Todas as áreas sofreram drasticamente o impacto da guerra”, sublinha o reconhecido ambientalista, que, no entanto, reconhece os importantes passos dados no período colonial para conservar a natureza. A primeira República também desempenhou um papel importante nesse sentido, com a aprovação de um conjunto de instrumentos legais tendentes a pôr cobro à caça furtiva.
É daí que, segundo Carlos Serra, depois das hostilidades militares nota-se a retoma “gradual” das áreas de conservação, com suporte de algumas entidades internacionais. “Foi possível erguer o Parque Nacional de Gorongosa, a Reserva Especial de Maputo”, recorda, destacando igualmente a retirada de minas que estavam nas áreas de conservação, bem como a construção de algumas infra-estruturas.
Leis devem ir além das Áreas de Conservação
O ambientalista sublinha a necessidade de ampliar o alcance das leis de conservação para além das áreas protegidas. Segundo ele, apesar da revisão e republicação da Lei de Conservação em 2017, ainda há muito a ser feito. “O foco é na rede nacional das áreas de conservação”, afirmou, referindo-se às lacunas na legislação que não abrangem a biodiversidade presente em todas as regiões de Moçambique.
Serra explicou que a lei actual se concentra em categorias, gestão, parcerias e financiamento para a conservação, visando criar um quadro nacional apropriado. No entanto, isso resultou num conjunto de legislação mais focado nas áreas de conservação do que na biodiversidade como um todo. “Acabamos ficando com um pacote de legislação que é muito mais de áreas de conservação do que de biodiversidade”, disse ele.
O ambientalista destacou o dilema de como considerar a riqueza da diversidade de espécies, a diversidade dentro de cada espécie e a diversidade dos ecossistemas a nível nacional, incluindo as áreas terrestres, marítimas e aéreas. Ele questiona: “Qual é o quadro que rege essa biodiversidade?” Este é um desafio que, segundo Serra, precisa ser abordado para proteger plenamente a biodiversidade de Moçambique.
Serra destacou ainda a necessidade de as leis estarem alinhadas com a realidade, o que é um processo complexo. “Isso requer investigação e pesquisa. Durante a implementação, é importante ter participação e engajamento. Após a aprovação da lei, é necessário definir quem será responsável pela sua implementação e avaliação. Esse é um problema também na legislação ambiental”, detalhou, apelando para a criação de condições para que a Administração Nacional das Áreas de Conservação (ANAC), Agência Nacional para o Controlo da Qualidade Ambiental (AQUA) e Instituto Nacional do Mar (INAMAR) actuem fora das áreas de conservação.
Urbanização, corrupção e literacia ambiental são desafios
Um dos factores apontados pelo ambientalista, que ainda representa um obstáculo, é a urbanização. Ele sugere que deveríamos adoptar modelos de urbanização que não apenas evitem a degradação, mas também preparem a população para interagir de forma positiva com o meio ambiente, promovendo o plantio de árvores e a consciencialização sobre áreas verdes.
O crescimento populacional, a corrupção e o défice de literacia ambiental são outros desafios significativos. Segundo o ambientalista, esses problemas podem ser superados por meio de uma boa governação ambiental, que permita a participação cidadã e garanta transparência nos processos.
Ele destacou a importância de compartilhar os benefícios das florestas com as comunidades locais, afirmando que os frutos das florestas devem beneficiar primeiramente essas comunidades, evitando a dependência do extrativismo até à exaustão dos recursos.
Além disso, a educação, sensibilização e capacitação da população são vistas como soluções essenciais. O ambientalista também ressaltou a importância de engajar as comunidades e de fortalecer os conselhos locais para prevenir danos ao meio ambiente. Ele acredita que uma descentralização bem-sucedida, que empodere as entidades locais próximas aos recursos trará benefícios significativos.
Na opinião de Serra, a prevalência dos factores mencionados acima como desafios é resultado da falta de estudos que permitiriam o acesso a elementos importantes no processo de tomada de decisões. “Quando mais conhecemos a nossa biodiversidade, mais podemos convencer os decisores a assumir o caminho certo”, anotou, destacando a necessidade de fazer-se levantamento de ameaças.
Baixas emissões não isentam o País do perigo
O ambientalista explicou ainda que, embora Moçambique tenha emissões baixas de gases poluentes em comparação com países desenvolvidos, não se pode dar ao luxo de relaxar, sob pena de sofrer efeitos nefastos, como, aliás, já vem acontecendo.
“Se continuarmos a degradar os ecossistemas importantes para a resiliência, os resultados serão cada vez piores. Sem a protecção adequada dos ecossistemas e sem uma governação baseada numa visão eco-sistémica, nossa vulnerabilidade aumentará. Isso significa que as emissões de outros países terão um impacto mais severo sobre a vida dos moçambicanos. Cada ciclone que atinge Moçambique causa mais danos porque encontra um território já enfraquecido pela degradação das florestas, mangais, ocupação de terras húmidas e outros factores. Esses problemas aumentam a extensão dos danos causados”, assinalou.
Serra também mencionou a existência de mecanismos para o licenciamento ambiental, que visam garantir precaução quanto aos impactos. No entanto, ele levantou uma dúvida: “Será que estamos a alocar recursos suficientes para garantir que a auditoria ambiental seja realizada de forma oportuna?”
Ele observou avanços na integração do sector ambiental no plano quinquenal do Governo, destacando os esforços realizados entre 2015 e 2019, quando o meio ambiente foi um dos cinco pilares prioritários. Isso envolveu a celebração de acordos com parceiros-chave e uma maior aproximação com instituições internacionais. Serra acredita que o próximo plano quinquenal deve focar na biodiversidade e na operacionalização da agenda ambiental a nível nacional, com ênfase no meio local.