– “Homens da zona norte, onde preserva-se a tradição dos ritos, suicidam-se menos”
Moçambique é recorrentemente referido como um dos países onde mais se registam casos de morte por suicídio, tendo, em determinados anos, liderado o ranking ao nível do continente. Esta situação faz com que o suicídio seja um tema de interesse nacional, o que justifica a busca por uma maior compreensão do fenómeno. Com esse desiderato, Dossiers & Factos entrevistou o juiz Jafete Fremo. O magistrado afecto ao Tribunal Judicial da Província de Maputo faz uma abordagem multidisciplinar sobre o tema, e defende que os ritos de iniciação podem desempenhar um papel importante na prevenção de suicídios. Fundamenta sua posição fazendo notar, por exemplo, que na zona norte do País, onde os ritos são respeitados à risca, a propensão ao suicídio é menor.
Texto: Serôdio Towo
Dossiers & Factos (D&F): Dados existentes dão conta de que os casos de suicídio cresceram muito no país. Moçambique é um dos países com taxas elevadas de suicídio; só no ano de 2023, onze por cento das mortes foram por causa de suicídios. Ainda não existem dados com relação ao ano de 2024, mas temos vindo a assistir a esses casos. O que entende que pode estar por detrás destas estatísticas?
Jafete (J): Há vários factores que podem influenciar os suicídios, mas era importante que tivéssemos um estudo prévio, dirigido por um sociólogo, porque temos instituições aqui no país que, quando há fenómenos dessa natureza, dedicam-se a fazer levantamento de antecedentes que levaram as pessoas a cometerem suicídio ou a um determinado tipo de comportamento. Assim, podemos apresentar ideias sobre o que pode ser ou não ser a causa, como ansiedade, despreparo para situações de frustração sobre aquilo que se almeja, e expectativas que são frustradas, levando ao suicídio como forma de a pessoa se sentir livre daquilo que perspectiva e não consegue realizar. Se formos a ver as poucas leituras e relatos que já tive como cidadão, é que alguns se suicidaram porque foram a jogos de fortuna ou azar. Como o próprio nome já diz, nós, quando jogamos, esperamos ter a fortuna ou o azar, e parece que a maioria dos que se suicidam são os que tiveram azar, porque os que tiveram fortuna não podem justificar isso. Esse provavelmente seja o meio que eles recorrem e acham ser o mais eficaz para realizar as expectativas que as pessoas têm no seu dia-a-dia, mas a vida não pode ser concebida apenas em expectativas. Todos temos expectativas, mas há um ditado que diz que devemos saber medir nossa ambição, até onde podemos chegar e quando podemos chegar, e o que queremos não pode ser a qualquer custo, porque podemos não ter capacidade para alcançar. Tenho que saber que não tenho capacidade para chegar naquele nível, não tenho capacidade de ter uma casa daquela natureza, um carro daquele nível. Tenho que comprar o que minhas condições permitem. Não posso cobiçar e ter ambição pelo que o outro tem, que eu não posso ter, e a tendência é pensar em como a pessoa adquiriu aquilo. Quando queremos algo que não temos capacidade de conseguir, acabamos frustrados. Também há outros factores além dos jogos de azar e fortuna, como as questões de adultério.
D&F: Pois, e são cada vez mais esses casos…
J: Sim. Não é um problema de hoje, sempre houve adultério. A questão que se coloca é: por que os de ontem não se suicidavam por conta do adultério e os de hoje se suicidam? Preciso ler um pouco da sociologia e antropologia dos nossos povos. Aqui no sul, quando uma mulher fosse encontrada em adultério, cortavam-lhe a orelha para ouvir bem, e os maridos é que faziam isso. Na zona norte litoral de Moçambique, há uma prática antiga em que, quando uma mulher comete adultério, o homem deve deixar algo para o dono da casa, mas acredito que já não se pratica. Há um ditado que diz que a composição das casas na zona norte e mesmo na zona de Inhambane tem duas saídas, duas portas. Se formos ver, há uma porta das casas que dá acesso à rua e, segundo os mais velhos, a porta frontal da casa não é usada pelo dono da casa. Ele usa a porta traseira para entrar na sua casa e só entra sem bater se a mulher não tiver deixado um par de chinelos na entrada traseira, permitindo que o homem possa sair pela porta frontal se estiver em um acto de adultério. Os homens procuram o suicídio quando viajam e querem surpreender as mulheres. Quando voltam, ligam para suas mulheres avisando, mas para quê surpreender? E se encontrarem elas em flagrante, como vão agir? Os homens da zona norte são preparados e vão para ritos de iniciação, sendo preparados para esse tipo de situação. Se formos ver, são poucos os suicídios que acontecem na zona norte. Não sou sociólogo, mas os homens da zona norte me parecem mais preparados que os homens da zona sul. Eles têm a vantagem de irem aos ritos de iniciação, enquanto os homens do sul não. Havia ritos de iniciação na zona sul. Se conversarmos com uma idosa de 80, 90 anos, ela dirá que havia segredos que aprenderam nos ritos e que não deviam revelar.
D&F: Ritos de iniciação despoletam muito debate; alguns defendem e outros não. Como juiz ou jurista, entende que os ritos de iniciação têm, de alguma forma, um impacto positivo para a sociedade?
J: Sempre tiveram. Há uma crítica que se faz aos ritos, mas é preciso ver o momento em que as matérias são dadas. Os ritos deviam ser dados de forma faseada. No sul, o homem e a mulher, quando vão se casar, são preparados pelos tios em um momento muito curto, diferente do que se faz na zona norte. Devia haver três fases dos ritos de iniciação: na adolescência, para os meninos; as meninas, logo ao verem o primeiro ciclo menstrual, deviam ir aos ritos de iniciação para serem educadas a terem cuidados com o corpo, pois podem engravidar ainda adolescentes. Quando ultrapassam a fase da adolescência, podem ser encaminhados novamente para a vida matrimonial.
D&F: Sob o ponto de vista da lei, como se aborda a temática do suicídio? Sabemos que a tentativa de suicídio é crime. Qual é o papel dos tribunais quando enfrentam casos dessa natureza?
J: O que posso dizer é que são poucos casos de tentativa que chegam ao tribunal. É verdade que as autoridades policiais tomam conhecimento e fazem a ocorrência, mas, desde que estou no tribunal, nunca recebi situações dessa natureza. Provavelmente, deveria se fazer um levantamento para ver o que está a acontecer com as instruções, por isso é difícil fazer abordagem. Quando temos uma situação de tentativa, as autoridades policiais fazem a comunicação e descrevem os factos, mas depois dizem que se lavrou o auto. Talvez seja por conta da competência do tribunal onde estou, mas nunca tive uma situação.
“É preciso haver acompanhamento psicológico”
D&F: Qual deveria ser o tratamento? Julgamento, aconselhamento ou condenação?
J: Para mim, alguém que tenta cometer suicídio padece de algum problema, e o estado devia preocupar- -se em compreender o problema que o indivíduo tem e procurar resolver. Então, deve ter acompanhamento psicológico. Os problemas são vários; imagine que um indivíduo tente suicidar-se por estar super-endividado. Poderia até cortar a orelha, mas é crime. Antigamente, fazia-se isso, mas hoje, se vai cortar a orelha, será processado.
D&F: Estamos a falar de casos de suicídio, mas temos casos de homicídios pelas mesmas causas: adultério, dívidas, etc. Como interpreta quando está em casos de homicídio por essa natureza?
J: Há vários tipos de homicídios e várias motivações, e é preciso compreender por que alguém fez aquilo. Há situações que necessitam de compreensão porque há maníacos que cometem homicídios porque são psicopatas. Nós só fazemos a decisão penal, de condenar, mas também é preciso internar em um centro de reabilitação.
D&F: Nosso país tem capacidade para o efeito?
J: Temos centros para o efeito e há um seguimento. O hospital psiquiátrico de Infulene tem respondido aqui na zona sul. Não sei dizer na zona norte, mas na zona centro temos a clínica em Nampula que faz esses serviços. Nunca tive um processo que trouxesse os resultados, mas tive processo em que, analisando a conduta e a forma como o agente comete os homicídios, percebe-se e pede-se informação aos médicos, e eles dizem o que está acontecendo. “É preciso ocupar os jovens”
D&F: Não viemos buscar a solução, mas, estando desse lado das togas, batinas pretas, procurando impor a lei, que conselho pode dar à sociedade para esses casos?
J: Quando olho para esses casos, vejo que há necessidade de envolvimento de todos. O estado faz a sua parte, a religião também, e a família faz o seu papel. Assim, temos uma sociedade que pode viver em um meio harmonioso, sem esses problemas. Por exemplo, as igrejas, além do culto dominical, deviam desenvolver acções para os seus membros: estudo bíblico, catequese, música, teatro, futebol, animação cultural. É preciso ocupar os jovens em todos os níveis. Falo dessas actividades olhando para a igreja católica, da qual sou participante. Mas temos os muçulmanos, que têm a madraça, onde os filhos são ensinados sobre o Alcorão, o bem e o mal. Se temos uma igreja que não ensina esses valores, vamos à igreja no domingo ou quarta-feira para a celebração dominical, mas não há acções para mudar o homem. A missa pode não transmitir tudo que pretendemos, mas o pequeno grupo ensina a ter respeito. Um muçulmano sabe qual o tratamento a dar ao casar com mais de uma mulher, por exemplo. Nunca vimos muçulmanos a brigar na rua porque um tem mais de uma mulher, pois obedecem estritamente ao que é dito pela religião. Temos que valorizar isso. Um indivíduo que não passou por aquela religião, não teve ritos de iniciação, cujos pais e tios nunca sentaram com ele, acaba tendo dificuldades.
D&F: Tem mais algum comentário sobre as causas do suicídio e como podemos evitá-lo?
J: Esse problema que temos hoje precisa de leitura e investigação sobre como era a vida na Europa, principalmente na França e Inglaterra, na fase da revolução industrial. O que acontecia? Sou jurista e não historiador, mas estudei um pouco dessa história. Precisamos estudar o que aconteceu nesses países e o que está a acontecer agora: alcoolismo, prostituição, suicídios. Nessa época, também havia suicídios perigosos, com pessoas se atirando na frente de comboios. Portanto, há um problema que deve ser analisado e resolvido. Podemos estar equivocados em dizer que temos esses homicídios por conta das redes sociais. Pode ser que sempre houve, mas agora temos informações em tempo real, por isso pensamos que há homicídios demais, enquanto a tendência sempre foi a mesma. Há que haver centros de pesquisa e estudo. O trabalho que está a ser feito seria bom se não terminasse aqui, mas continuasse ouvindo sociólogos e historiadores. Eles podem nos fornecer uma informação mais complexa sobre o que está a acontecer. Podemos estar a dizer que é o aviator, adultério, ansiedade e outros problemas que afligem a juventude. Quando não estamos preparados para ultrapassar os problemas, a solução é aquela drástica, como o homicídio.
Texto extraído na edição 564 do Jornal Dossiers & Factos