– “Neoliberalismo é assassino para Moçambique”
– Interesse nacional subjuga-se a interesses de grupos
Aadopção do neoliberalismo, em substituição da economia centralizada, inspirada no marxismo-leninista, representou um ponto de viragem na história de Moçambique, com o Estado relegado ao plano secundário e ao serviço de interesses externos devidamente apadrinhados por parte das elites nacionais. A conclusão é do professor universitário Régio Conrado, que, ao olhar para os resultados desta mudança imposta pelas instituições da Bretton Woods – uma burguesia improdutiva e aumento das desigualdades – não hesita em afirmar que o neoliberalismo é “assassino” para Moçambique. Para Conrado, o ideal para o País é um Estado desenvolvimentista – que participa no processo de excitação para o desenvolvimento por meio de políticas que visam o desenvolvimento colectivo – à exemplo da China, Rússia ou mesmo da “Tanzânia de Maguguli”. Isso passa, no entanto, por expurgar os infiltrados que, por via da Frelimo, capturaram o Estado, mesmo que isso represente um sacrifício, defende o entrevistado. Esta é a primeira das quatro partes de uma entrevista de fundo que incorpora alguns resultados das pesquisas do professor universitário no âmbito do pós-doutoramento em Public Policy and Reforms Analysis, no Reino Unido.
Texto: Amad Canda
Dossiers & Factos (D&F): Como é que analisa o modelo de desenvolvimento adoptado ou que está a ser seguido por Moçambique, desde a independência nacional até a está altura, se é que consegue identificá-lo?
Régio Conrado (RC): Antes de qualquer speculatio, é preciso talvez chamar atenção para dois problemas iniciais. O primeiro é que aquando da independência, tínhamos um País embrenhado em várias dificuldades, peripécias e paradoxos que emergiam da situação colonial. O segundo é que Moçambique era uma invenção administrativa e política do colonialismo português. Contudo, conseguiu, dentro de uma matriz ideológica marxista-leninista, definir alguns aspectos fundamentais que podem ser considerados como constitutivos do modelo de desenvolvimento orientado, por um lado, pela estruturação sócio-antropológica e política interna, e, por outro lado, pelas aspirações mais profundas dos diferentes grupos sociais e culturais que compunham esse espaço geográfico que se chama Moçambique. Ou seja, a independência significou a apropriação, pelos moçambicanos, da construção do seu País. Esse processo iniciou pela definição do tipo de Estado, de administração pública, de serviços públicos que devíamos ter – aliás, o último livro de Hélder Martins, “Crónicas de um insubmisso volume 2”, reflecte com alguma profundidade quais foram as grandes opções em termos de políticas nacionais de saúde. Houve igualmente uma clara definição do que Moçambique deveria ser, o devir moçambicano, tendo em conta a linha ideológica anti-capitalista e anti-imperialista, mas também as complexidades socioeconómicas e culturais do País. Quer dizer que, nesta fase, Moçambique definiu, a partir de si próprio, quais eram as grandes linhas em termos de orientação que o País deveria tomar naquela altura. Nestes termos, podemos assumir que o modelo de desenvolvimento, naquela altura, era consequência da formulação de questões profundas sobre o destino que Moçambique deveria seguir. Podemos, outrossim, afirmar que Moçambique pretendia resolver problemas do presente – o subdesenvolvimento e a (re)construção do Estado pós-colonial – e do futuro de Moçambique – a criação da nação moçambicana e a consolidação da independência. É neste panorama que vamos constatar que Moçambique vai decidir ter um Estado centralizado com fortes características desenvolvimentistas, cujo primeiro fito era eliminar os vestígios do colonialismo, instigar e desenvolver a unidade nacional, reconversão do papel do Estado e ampliação do aparelho burocrático nacional para responder aos principais anseios dos moçambicanos.
D&F: Do ponto de vista económico, como avalia este Estado a que chama de centralizado com características desenvolvimentistas?
RC: Em termos económicos, Moçambique decidiu não necessária e completamente abolir a propriedade privada, mas fazer do Estado um actor principal da economia. Temos o exemplo das cooperativas, machambas estatais e aldeias comunais, cujo objectivo era também responder aos desafios socioculturais, socioeconómicos e financeiros que existiam naquela altura. Para gerir os recursos que tinha, o País optou pelo Estado desenvolvimentista, que tinha o controle tanto da formulação como da implementação das políticas nacionais de desenvolvimento.
“Em 1987, Moçambique perde o controle do seu destino”
D&F: O País foi feliz ao optar por estas opções?
RC: Ora, podemos discutir, por exemplo, se as aldeias comunais foram positivas ou não. Contudo, nessa altura definiu-se, concordemos ou não hoje, uma opção que melhor respondia aos desafios que o País tinha. Sabemos que tínhamos, como mostra a tese de doutoramento de Manuel Araújo, populações muito dispersas, e a opção que se encontrou para fazer uso racional dos recursos foi, entre outros dispositivos de governação e gestão das populações, as aldeias comunais, pois estas poderiam permitir ter as populações congregadas e, por assim dizer, facilitaria a prestação de serviços públicos. Ademais, tivemos uma proposição de política de desenvolvimento ambiciosa, em 1981, que foi o Plano Prospectivo Indicativo (PPI), que era uma proposta de 10 anos para retirar Moçambique do subdesenvolvimento através da industrialização e mecanização da agricultura, a fortificação do Aparelho do Estado e, por consequência, da sua capacidade de intervenção nos aspectos estratégicos para o desenvolvimento, da socialização do campo, da transformação das relações de produção no campo, entre outros aspectos. Todos estes, bem considerados, induzem-nos a afirmar que, na primeira República, tivemos, de facto, uma reflexão profunda sobre qual é o tipo de desenvolvimento que devíamos ter e quais eram as opções geopolíticas que melhor iam responder a estes desafios.
D&F: E deixamos de pensar no que melhor responde aos nossos anseios?
RC: O grande problema começa com a entrada de Moçambique nas instituições da Bretton Woods, o Banco Mundial (BM) e o FMI, que descaracterizou completamente aquilo que eram os fundamentos ou as estruturas fundacionais que Moçambique tinha tentado construir desde a independência. Portanto, em 1987, quando se começa, de facto, a implementação das políticas neoliberais em Moçambique, com PRE em 1987, e posteriormente o-PRES em 1989, que coincide com o V congresso da Frelimo, Moçambique perde completamente a bússola e o controlo do seu destino e o das opções de desenvolvimento nacional. Moçambique entra para a tutela do Ocidente.
D&F: Mas o País aderiu às políticas da Bretton Woods justamente por necessidade. Será muito correcto responsabilizar o FMI e BM por este descalabro, e não, primeiro, o próprio País por eventuais falhas na implementação da primeira linha ideológica e económica?
RC: De forma simplista, é verdade que podíamos dizer que Moçambique falhou a implementação das primeiras opções de desenvolvimento que se construíram logo depois da independência, mas se especular mais a fundo, o problema não está no facto de Moçambique ter ou não falhado na implementação dos seus dispositivos de desenvolvimento.
Bretton Woods foi cronicamente perversa
D&F: Onde está, afinal, o problema?
RC: O problema é que as épocas mudaram, os factores estruturais e conjunturais também modificaram-se e as dinâmicas sociopolíticas nacionais determinaram em grande medida a não implementação daquilo que eram as grandes opções de desenvolvimento de Moçambique. Se fizer uma análise em termos de socio-antropologia do desenvolvimento e em termos de implementation studies, vai constatar que, mesmo que tenha havido limites nos programas de desenvolvimento nessa altura, muito foi conseguido na Saúde, na Educação, Justiça, entre outros aspectos. É por isso que muitos dos ganhos havidos na Saúde e Educação, com todos os problemas que conhecemos hoje, são produto das fundações e opções escolhidas naquela época. Mesmo com as reformas neoliberais agressivas, há ganhos que o País conseguiu manter nos sectores acima mencionados, como, por exemplo, manter um sistema de Saúde praticamente gratuito. O Estado moçambicano, com todas as fragilidades e contradições, continua, em grande medida, sendo um Estado com pendor social muito forte, que tem como intenção profunda servir os moçambicanos, sobretudo as classes populares e as mais desfavorecidas. Com isso não pretendo dizer que o Estado, numa perspectiva da economia política, seja orientado pelos interesses concretos das maiorias, mas apenas que uma análise fina e comparativa permite dizer que ainda temos um Estado que tem no seu substrato uma intenção de ser um Estado social, mesmo com as pressões do BM, FMI, OCDE, etc. Ora, é verdade que a responsabilidade da perca da bússola do desenvolvimento e do destino de Moçambique não é só das instituições da Bretton Woods, mas também seria exagerado não aceitar que estas instituições foram cronicamente perversas para aquilo que Moçambique viria a ser no pós-Samora. Moçambique negociou os termos de referências para as reformas neoliberais sem estar em posição de força. Todavia, o facto de Moçambique ter negociado em situação de fragilidade não retira a outra tese, que é provável que houvesse um grupo dentro do aparelho do Estado moçambicano que tivesse interesses estruturais nas privatizações, que houvesse a reintrodução da propriedade privada tal como vimos com as discussões do IV Congresso da Frelimo e que, por consequência, o Estado tivesse menos intervenção na economia para que estes grupos se apoderassem do essencial do parque económico do Estado moçambicano. Não obstante, essas reservas, julgo pertinente acertar que FMI e BM, com os seus métodos e políticas de ajustamento estrutural, são uma peça fundamental que desorientou de forma agravada as opções de desenvolvimento. Esse processo ocorreu em estreita articulação com algumas elites nacionais. Foi um processo de esvaziamento da nossa agenda nacional, pois o interesse fundamental não era o desenvolvimento de Moçambique, mas sim a acomodação do capital internacional em Moçambique e a exploração e espoliação dos nossos recursos estratégicos.
“Moçambique foi capturado por grupelhos aliados ao grande capital”
D&F: Portanto, as responsabilidades são partilhadas entre o capital internacional e as elites locais?
RC: A ganância da implantação do capital internacional num País periférico como Moçambique não poderia ser concretizada sem ser sustentada pelas elites locais que agem como sipaios ou vassalos do grande capital internacional. Estamos a dizer, de forma sociológica, que Moçambique já não tinha o seu destino nas suas mãos, pois este tinha sido capturado por grupelhos aliados ao grande capital. Esta atitude explica, seguindo as teses desenvolvidas, por exemplo, no livro Transforming Mozambique: the politics of privatization, de Anne Pitcher, e Peace Without Profit: How the IMF Blocks Rebuilding in Mozambique, de Joseph Hanlon, por que é que as reformas neoliberais foram social e economicamente nefastas para as classes populares que esperavam mudanças estruturais nas suas vidas. Ademais, estas reformas neoliberais eram desadaptadas aos verdadeiros interesses nacionais estratégicos, por duas razões fundamentais: primeiro porque, se por um lado, em 1990, temos a Constituição que introduz a economia do mercado, as liberdades fundamentais e o multipartidarismo, por outro lado, esta Constituição, falando na óptica económica, ao introduzir a economia do mercado sem as condições objectivas para o seu sucesso – Estado capaz de regular, de controlar e proteger os mais desafortunados – estava a garantir que a classe minoritária, muito próxima do aparelho central do Estado, suficientemente formada para poder competir, participar, engajar-se plenamente na economia de mercado, pudesse apropriar-se do essencial das vantagens decorrentes desse modelo económico. Em abono da verdade, esse modelo só era compatível com os interesses da minoria e estava completamente em contradição com os interesses da maioria dos moçambicanos. Segundo, porque ao propor o desmantelamento do Estado e aplicar o princípio segundo o qual o mercado resolve todos os problemas societais, abria-se o caminho para o empobrecimento agravado das classes sociais mais desfavorecidas, pois estas não se encontravam nas condições objectivas de participar efectivamente desse modelo económico. Não é por acaso que as pessoas que se beneficiaram com a liberalização económica foram as pessoas que já estavam em posições avantajadas na primeira República, negligenciando as populações fustigadas pela penúria. Isto vai demostrar que, de facto, as escolhas económicas de 1987 não respondiam às principais preocupações em termos de desenvolvimento dos moçambicanos, apenas daqueles que, tendo informações estratégicas, poderiam proceder com a acumulação primitiva de capital. Podemos dizer, nesse sentido, que de 1990 à esta parte, Moçambique não tem um projecto de desenvolvimento, menos ainda um projecto de desenvolvimento que responda aos principais problemas do País. Isso mostra, na minha opinião, que se a primeira República, com todas as fragilidades que tinha, definiu com clareza as opções de desenvolvimento, a segunda República, no fundo, é praticamente exterior em relação às opções que tomou e, sobretudo, é tão exterior porque as opções de desenvolvimento escolhidas respondem mais aos interesses do capital estrangeiro, dos grupos minoritários, a desfavor do que é verdadeiramente fundamental para Moçambique.
“Interesse nacional está subjugado ao interesse de grupos”
D&F: Moçambique não é o único País que alienou a sua soberania económica às instituições internacionais. Mas existem exemplos que são consensualmente tidos como de sucesso: é o caso do Botswana e Cabo Verde. O que torna estas nações diferentes?
RC: Tem razão ao colocar essa questão fundamental. Há dois aspectos que é preciso trazer à tona. O primeiro é que, em 1975, primava o princípio do interesse nacional e não o interesse de um grupo ou o interesse individual, e primava ainda o interesse nacional sobre o estrangeiro. De 1990 para cá, o que se constata é que o interesse nacional é subjugado ao interesse de grupos e do grande capital. Quer dizer que a arquitectura económica de Moçambique está muito mais estruturada para responder aos interesses estratégicos destes grupos e da sua articulação com os grupos estrangeiros do que com o que é fundamentalmente prioritário para Moçambique: combater o subdesenvolvimento e dar dignidade a todos os moçambicanos. Então, é óbvio que vai haver uma grande diferença com um País como Botswana, que mesmo que tenha relações com as instituições da Bretton Woods, tem clareza em termos de interesse nacional que corresponde às expectativas, às convicções das elites e articuladas com as aspirações das populações locais. O Botswana, para além de ter níveis de corrupção baixos, tem políticas que protegem os interesses nacionais do capital internacional. Segundo, e na sequência de estudos feitos sobre Senegal, Costa do Marfim e Camarões, mister é constatar que uma das grandes críticas que se fez ao PRE é que não só tinha destruído os fundamentos dos Estados, mas também tinha criado condições para a emergência de uma burguesia improdutiva, incompetente na produção da riqueza nacional, porque simplesmente estava numa lógica de acumulação primitiva do capital, que pode se associar ao roubo dos interesses fundamentais dos seus países. Estes resultados, e em consonância com os estudos que fiz sobre as implicações das reformas neoliberais no funcionamento do Estado moçambicano, revelam que Moçambique ainda está como era no tempo colonial, ao serviço das necessidades estrangeiras, mormente ocidentais.
Continua na próxima edição, numa segunda parte que contém referências às “multinacionais inúteis”, ao papel de Armando Guebuza e às possíveis saídas, entre outros aspectos.
Texto extraído na edição 570 do Jornal Dossiers & Factos