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“SEGUNDA INDEPENDÊNCA”: “Mali, Burkina Faso e Níger mostram dignidade”

– Defende Régio Conrado, para quem os africanos devem ser senhores do seu destino

A terceira parte da conversa com o reconhecido académico Régio Conrado expande os horizontes, trazendo uma perspectiva não meramente económica, mas da economia no contexto geopolítico e geoestratégico. Neste quadro, é cristalino como a água, aos olhos do docente universitário, que há por parte do Ocidente uma tentativa de diabolização das relações de cooperação entre os países do Sul Global. “É só ver a narrativa sobre a China em África”, exemplifica o estudioso, defendendo que a cooperação Sul-Sul tem sido mais benéfica para África do que a relação com o Ocidente, que, em mais de 60 anos, não só não gerou grandes transformações em termos de investimentos, como sequestrou a soberania das nações africanas e ainda as deixou altamente endividadas. Destarte, o nosso interlocutor propõe que o continente negro, e Moçambique em particular, lute pela recuperação da sua dignidade, e cita Mali, Burkina Faso e Níger como exemplo. Siga o fio!

Texto: Amad Canda

Dossiers & Factos (D&F): No contexto da construção de um mundo multipolar, um projecto no qual Putin e Xi Jinping se mostram muito empenhados, surgem guerras com o Ocidente, até no campo económico. Pode ser interpretado dentro deste quadro o fato de os grandes projectos apoiados/financiados pelo Sul Global – a exemplo do Aeroporto de Nacala, da migração digital e, em certa medida, das “dívidas ocultas” – serem quase sempre associados a práticas de corrupção, ou isso é apenas coincidência?  

Régio Conrado (RC): É preciso dizer que a questão da corrupção não é apanágio das potências no seu global. As próprias instituições do Ocidente também promovem a corrupção e, inclusive, grande parte dos projectos promovidos por essas instituições ou organizações não resultaram em nada. Desde que essas organizações entraram no continente africano, os seus resultados são mitigados, são nulos. Ponto dois: é preciso recordar que a corrupção nos países africanos, e particularmente em Moçambique, não começa no período em que o Sul Global começa a ser activo. Mesmo no próprio Ocidente, constatamos como a corrupção é tão profunda e estrutural. Eu não diria que os países do Sul Global, falo da China, Brasil, Índia, sejam os incitadores da corrupção. As práticas da corrupção devem ser consideradas como constitutivas do funcionamento do panorama das instituições financeiras internacionais. O problema está em como os países que recebem esse dinheiro devem gerir e que tipo de funcionalidade devem ter quando recebem esse dinheiro. Temos outro exemplo, a Tanzânia, que recebe dinheiro dessas instituições, mas o nível de engajamento para o interesse nacional é superior àquilo que é a corrupção praticada. Quer dizer que o problema não pode ser tido deste novo paradigma do Sul Global, mas tem que ser visto como uma parte constitutiva das instituições, mas ao mesmo tempo só pode ser solucionado através da capacidade interna de proteger os interesses nacionais. Deve-se promover a ideia de que qualquer recurso que entra para o interior deve beneficiar o objecto pelo qual foi fundado o processo do empréstimo.

D&F: A questão colocada visava compreender, fundamentalmente, o seguinte: sendo certo que a corrupção é transversal a todos os projectos, independentemente do financiador, por que é que os projectos mais polémicos, que geraram casos mais polémicos a nível dos tribunais, são os financiados pelos países do Sul Global? Temos casos de corrupção em projectos financiados pelo Ocidente, mas a repercussão, por norma, é baixa…

 RC: É fato que o Ocidente tem todo o interesse em desprestigiar e negativizar aquilo que são as intervenções feitas pelos países do Sul Global. Sabemos disso. É só ver a narrativa sobre a China em África, a ideia de que a China está a endividar os países africanos e a capacidade desses países está aquém dos recursos que recebem, etc.

“Há uma narrativa em torno da cooperação Sul-Sul”

D&F: Falou-se muito nesse tom, por exemplo, no auge da migração digital da radiodifusão em Moçambique, na Zâmbia e em vários outros países africanos… 

RC: Sim. Por outro lado, há que constatar uma coisa. Qual é, de fato, a referência em termos de projectos apoiados pelo Ocidente? O que há de relevo? São raros esses projectos. Por mais que tenha havido corrupção, por exemplo, nos projectos de que estamos a falar, desde as pontes, estradas, aeroportos – obviamente existe o fenómeno da corrupção –, é preciso discutir de uma forma mais detalhada e compreender que há uma posição geopolítica. O Ocidente não só não foi capaz de trazer transformação em termos de investimento em infra-estruturas no continente africano, em mais de 60 anos de cooperação, como deixou os africanos altamente endividados. Os africanos ainda viram capturada a sua soberania por esses mesmos países, sem resultados concretos, seja do ponto de vista social ou económico, para a vida das populações. Há construção de uma narrativa negativa em torno da cooperação Sul-Sul e nós sabemos os porquês.

D&F: Pode detalhar?

RC: Isso mina as estratégias do Ocidente, que está a perder um grande espaço em termos de influência entre os países africanos. Basta olhar, por exemplo, para aquilo que está a acontecer na região do Sahel, falo do Burkina Faso, Mali e Níger. Basta olhar para a preocupação que tiveram com a vitória de Bassirou Diomaye Faye, no Senegal, com a dinâmica que houve no Gabão. Tudo isso, na verdade, tem a ver com interesses estratégicos desses países e não com os países que são recipientes desses fundos. Penso eu que o debate da corrupção é profundamente importante, mas é preciso não esquecermos que há lutas entre o Ocidente e o Sul Global. Ademais, a cooperação Sul-Sul foi muito mais útil, em termos de investimentos e construção de infra-estruturas no continente africano, que a relação que tivemos com o Ocidente. Na Etiópia, por exemplo, houve investimento chinês para a construção da linha férrea Etiópia-Djibuti, com 752,7 km de extensão, e em várias indústrias. Tudo isso é para compreendermos que, mesmo que haja corrupção, há coisas visíveis que estão a ser feitas. O problema fundamental não é a corrupção como tal. A questão de fundo é saber se, dentro deste mesmo processo de articulação entre os países do Sul Global, há resultados ou não. Recorde-se que o Banco Mundial recusou-se a financiar a ponte Maputo-KaTembe, e o Presidente Guebuza teve que ir buscar dinheiro na China. A ponte tem a sua utilidade, mesmo que alguns entendam que não, mas tem a sua utilidade. Podemos também falar da ponte sobre o rio Zambeze e várias outras coisas que Moçambique tem. Mesmo o Aeroporto de Nacala, do ponto de vista estratégico, era profundamente útil. Pergunto agora por que não está a funcionar e a quem interessa que não funcione?

D&F: Na sua opinião, qual é a resposta? 

 RC: É muito complicado responder essa questão, mas só a afirmação desta questão é pertinente para começarmos a compreender que há determinadas coisas que, na verdade, prejudicam aquela que é a verdadeira natureza de determinadas relações Sul-Sul, e sobretudo da relação conflituosa que o Sul Global tem com o Ocidente no que concerne às nossas influências, e Moçambique não pode deixar de manter relações comerciais, económicas, financeiras com esses países do Sul Global que têm a capacidade de financiar pelo simples fato de o Ocidente entender que há corrupção, até porque os próprios ocidentais corrompem todo mundo. Há vários exemplos na América Latina em que eles corromperam, fizeram golpes de estado, destruíram países, etc. Líbia é um exemplo de que o Ocidente não é parte da solução dos problemas do continente africano. Pelo contrário, o Ocidente é um problema grave no que concerne à segurança e ao desenvolvimento económico dos países africanos. Agora cabe aos próprios africanos definirem os parâmetros do tipo de relações que querem ter com qualquer que seja o país ou a potência mundial. Cabe aos países africanos tomarem suas decisões, definir o caminho a seguir em função dos seus interesses.

“Mali, Burkina Faso e Níger mostram dignidade…”

D&F: A exemplo do que está a acontecer no Sahel, com aquele ensaio de uma federação envolvendo Mali, Burkina Faso e Níger?

RC: Sim, a Confederação dos Países do Sahel é uma plataforma que mostra que nós temos a dignidade de escolher e criarmos os nossos parceiros. Se a Rússia pode apoiar-nos melhor militarmente, agora vamos para a Rússia; se a China pode nos fornecer dinheiro para construirmos e explorar os nossos recursos, vamos para a China; se os americanos vêm com dinheiro e querem fazer um trabalho dentro daquilo que são as nossas visões de desenvolvimento, nós vamos aceder. Cabe à visão de desenvolvimento de cada país.

D&F: Observando o cenário naquela zona [Sahel], fica a sensação de que aquelas três Juntas Militares têm suas acções respaldadas pela população. Se Moçambique quisesse adoptar o caminho de ruptura com as políticas ocidentais, teria condições para tal?

RC: É, de fato, uma pergunta muito interessante. Porém, é necessário compreender que Moçambique não precisa necessariamente romper com o Ocidente, porque Moçambique não está tutelado pelo Ocidente. A situação da África Ocidental e do Sahel, em particular, é um pouco diferente. Moçambique nunca foi tutelado, mas aqueles países estavam tutelados pela França. Era necessário romper e fazer-se um processo de segunda independência contra a França, para poderem definir melhor a sua política externa e é o que estão a fazer agora.

D&F: Mas defendeu que Moçambique alienou sua soberania ao FMI e ao Banco Mundial… 

RC: Mas estamos a constatar que há um processo de redução do peso destas duas organizações no contexto de Moçambique, cujos resultados ainda não são tão visíveis em termos de impactos estruturais no funcionamento da nossa economia, mas também sabemos que o FMI e o Banco Mundial, no contexto de Moçambique, já fazem as coisas com menos arrogância do que acontecia nos anos passados, o que provavelmente mostre uma relação de mudança de comportamento e da relação de poderes entre Moçambique e essas instituições. É o início de um processo que vai ser necessário levar com mais vigor, com mais contundência. No contexto de Moçambique, no plano da sociologia e da sociologia política entre os moçambicanos e o seu governo, penso que os moçambicanos poderiam aceitar sacrifícios desde que fossem justificáveis. Grande parte da ausência de aceitação dos sacrifícios em Moçambique tem a ver com o entendimento de que os sacrifícios acabam beneficiando a um grupo que é exterior ao seu poder populacional, que está fora da maioria. Recorde- -se que Moçambique tem uma cultura de sacrifício. Se houvesse uma clara justificação de por que temos que tomar uma posição particular e não uma outra, e explicarmos que isso tem a ver com a reconstrução da nossa dignidade para o nosso desenvolvimento e para a fortificação do nosso patriotismo, obviamente eu penso que as condições seriam suficientemente preparadas para que Moçambique pudesse tomar medidas mais arrojadas. No caso da Tanzânia, Magufuli mostrou claramente que seu interesse era Tanzânia e os tanzanianos na negociação com as instituições internacionais, e talvez tenha morrido por causa dessa “violência” que tinha contra as multinacionais. Para o caso de Moçambique, é necessário que as elites governamentais se mostrem exemplares para que os moçambicanos compreendam que vale a pena sacrificar-se. Já tivemos isso, em 1975. Tomamos a opção de apoiar alguns países que ainda não estavam independentes a fazer a guerra. Nós acabávamos de alcançar a independência e tínhamos uma guerra civil, ainda assim houve compreensão dentro da sociedade moçambicana, mesmo que houvesse contradições. Quer dizer que a disposição das populações em relação aos sacrifícios depende da forma como as elites explicam, vivem e se posicionam na articulação com as populações. Isso explica grande parte da legitimidade que Ibrahim Traoré e Assimi Goitá têm no Burkina Faso e Mali. No final, o que os moçambicanos querem é o direito ao desenvolvimento e à soberania, ambos fundamentais. Os moçambicanos têm profunda consciência disso e entenderiam caso tivessem que fazer sacrifícios; e já o fizemos em Moçambique.

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