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SEGUNDO CONRADO: “Mozal e Sasol são inúteis aos moçambicanos”

Apologista de um Estado desenvolvimentista, Régio Conrado acredita convictamente que o neoliberalismo é assassino para Moçambique, justamente por vergar o Estado ao grande capital internacional. Nesta segunda parte da extensa entrevista que concedeu ao Dossiers & Factos, cita exemplos de multinacionais que, na sua opinião, são inúteis aos moçambicanos, não obstante obtenham cá lucros milionários. São os casos da Mozal e Sasol, que operam nas províncias de Maputo e Inhambane, respectivamente. O professor universitário, para quem Armando Guebuza foi um dos “melhores arquitectos do desenvolvimento”, considera que o próximo Presidente da República tem uma grande responsabilidade de alterar o rumo do País, o que, nas suas palavras, passa também pelo desmantelamento da rede criminosa que se infiltrou na Frelimo e, por esta via, no Estado. Esta entrevista, lembra-se, integra parte dos resultados das pesquisas do renomado académico no âmbito do pós-doutoramento em Public Policy and Reforms.

Texto: Amad Canda

D&F: Defendeu que o País está fundamentalmente ao serviço do capital internacional e dos interesses de determinadas elites locais. Facto é que, durante largos anos, o Moçambique teve um significativo crescimento económico. Isso não fragiliza sua tese?

RC: Enquanto Moçambique crescia em termos económicos de 7% a 8% durante alguns anos, o nível de pobreza e desigualdade aumentava. Esta situação explica-se porque o modelo económico que foi escolhido e a arquitectura económica subjacente visa acomodar interesses das multinacionais. A protecção social está ausente, o investimento nos sectores-chave, como a Defesa e Segurança, esta aquém do desejável. É a ortodoxia do Estado mínimo em acção. Nestas condições, o Estado deixou de ter o papel de definir-se como actor que incita o desenvolvimento do País. Tornou-se apêndice das manobras agressivas do capital estrangeiro. Em rigor, quem dinamiza o sector económico moçambicano já não é Estado, porque está desmantelado e destituído do essencial da sua força. São as instituições estrangeiras que definem o que é que tem que ser opcional em termos de desenvolvimento e de estruturação de Moçambique.

“Guebuza é um dos melhores arquitectos do desenvolvimento”

 D&F: Nesta perspectiva, não temos esperança nenhuma?

RC: Não podemos dizer que não temos esperança, porque apesar de todos estes problemas, há evoluções que foram feitas em termos de reformas, intervenções, proposições, sobretudo no Governo de Armando Guebuza, que considero, depois de Samora, um dos melhores arquitectos do desenvolvimento nacional, com os erros e decepções que causou aos moçambicanos. Mas, como bem sabe, grande parte das proposições (Agenda 20/25, a Estratégia Nacional de Desenvolvimento – ENDE 2015-2035) não conseguiram ter o sucesso que deveriam ter, porque a infra-estrutura do Estado moçambicano não é capaz de absorver qualquer preposição cujo objectivo é fazer de Moçambique um País soberano em função daquilo que são as suas prioridades. Portanto, que aparenta ser modelo de desenvolvimento neoliberal e de capitalismo selvagem é contra a construção de Moçambique soberano e próspero. Ademais, o Estado, tal como existe, não é apto para discutir as opções de desenvolvimento com os ditos parceiros de cooperação, tendo em conta aquilo que seriam as verdadeiras abordagens nacionais de desenvolvimento. É preciso também acrescentar que num País como Moçambique, não obstante o esforço que foi feito pela Frelimo, mormente Armando Guebuza, há muitos bloqueios encetados pelas organizações internacionais, mas também pelas elites nacionais que não estão interessadas que tenhamos uma infra-estrutura estatal capaz de impor uma visão que regula, que faça investimentos massivos nas questões sociais para que os moçambicanos vivam melhor. Prefere-se investir em sectores que são rapidamente passíveis de dar lucros exponenciais, mesmo que isso vá contra os interesses fundamentais do País. Chapo representa a consagração de uma esperança há muito desaparecida para Moçambique.

Visão da ENDE é efectivação do slogans do FMI e BM

D&F: No rol dos instrumentos orientadores, pode-se acrescentar a recente revisão da ENDE. Que avaliação faz deste documento?

RC: Se fizer uma análise em termos de public policy analysis, constatará que temos uma excelente estratégia, que diz pretender ter uma abordagem holística do desenvolvimento, porém, peca por ser omissa no que concerne à inovação baseada nas realidades moçambicanas para transformar estruturalmente Moçambique. Quando lemos com o rigor académico necessário, constatamos que falta visão, ou seja, o que a estratégia pretensamente chama de visão ou “transformação estrutural” é uma pura efectivação de alguns slogans do FMI e do BM, e contraria àquilo que podíamos chamar “lógica nacional de desenvolvimento”. Temos dispositivos internos que se dizem pretender promover o desenvolvimento nacional, por exemplo, a Agenda-2025, mas não temos uma clareza sobre qual é o tipo de desenvolvimento que nós queremos. Então, a ausência de uma visão de desenvolvimento nacional significa, outrossim, que ainda não estamos a pensar profundamente sobre quais são as melhores opções de desenvolvimento do País. Por isso, constata-se que a maior parte das reformas que são feitas, por exemplo na legislação económica, são, sobretudo, para poder flexibilizar o mercado de trabalho, os ditos investimentos estrangeiros, atractividade de Moçambique, etc., mas não são para fortificar o Estado em termos de intervenção na estrutura económica e poder ser de facto um orientador em termos de políticas de desenvolvimento nacional.

“Neoliberalismo é nefasto para Moçambique”

D&F: Mas o reforço da intervenção do Estado, num contexto em que o País se define como neoliberal, não seria uma contradição?

RC: É verdade que, olhando para aquilo que é a ortodoxia neoliberal que hoje impera em Moçambique, poderia ser visto como contra-senso se o Estado moçambicano obtivesse uma intervenção extremamente activa no sector económico. Mas é exactamente aí onde temos que dizer que o neoliberalismo para Moçambique é nefasto, é assassino para Moçambique. Os resultados de trabalhos de pesquisa feitos por mim durante o doutoramento, assim como agora no pós-doutoramento, bem como por alguns colegas nacionais e estrangeiros, mostram que as reformas neoliberais em Moçambique foram nefastas para a maior parte da população moçambicana. Se analisar com profundidade o modelo dos Estados da Europa continental, vai constatar que controlam as grandes empresas nacionais, sectores estratégicos da economia. Ou seja, tudo o que o Ocidente propõe como reforma para os países africanos não só não implementa nos seus respectivos países, mas também tudo fazem para enfraquecer os Estados africanos e as suas respectivas economias. Isso explica o porquê de, depois de mais de 30 anos de reformas neoliberais em Moçambique, as desigualdades estarem a aumentar, o Estado anda mais enfraquecido, a economia ainda é fraca, entre outros aspectos. Não tenho dúvidas de que precisamos de um Estado mais interventivo, mais estratégico, para usar a expressão do jurista e cientista político Chevallier no seu livre “L’Etatpost-moderne”. “Mozal e Sasol são inúteis aos moçambicanos”

D&F: O neoliberalismo é assassino por conta dos seus fundamentos ou por estar a ser mal implementado?

RC: É assassino, primeiro, e sobretudo, pela sua natureza dos fundamentos. Em Moçambique, o neoliberalismo está a fazer mal só às maiorias. Mesmo no ocidente, onde foi inventado, está a fazer mal. Se ler o trabalho de David Harvey, “Brève histoiredunéo- -libéralisme”, vai constatar que o neoliberalismo é contra o enriquecimento colectivo, é contra aquilo que o nobel de Economia, Jean Tirole, chamou de “economia do bem comum”. Segundo, há estudos que foram feitos em países africanos que mostram que o neoliberalismo, tal como foi pensado por Lippmann, que foi instalado nos países africanos, e em particular em Moçambique, não só é problemático porque é contrário às principais aspirações dos povos e Estados africanos, em geral, mas também, e sobretudo, porque ao reduzir o Estado a um papel marginal, num País que estruturalmente é pobre, que, ao mesmo tempo necessita financiar o potencial social, é um contra-senso seguir, por exemplo, a política de austeridade. Os trabalhos do senegalês Serigne Momar Sarrs mostram, para o caso do Senegal, que o neoliberalismo aprofundou a pobreza e criou fissuras sociais, entre outros aspectos. Para um Estado financiar de forma activa os sectores sociais, precisa de ter uma fonte de renda que lhe permita redistribuir, mas essa redistribuição não pode ser feita num contexto em que quem se apropria da riqueza são os actores privados, que na sua maioria nem são nacionais. Os nacionais ganham migalhas, o fundamental da riqueza nacional é praticamente roubada pelas grandes firmas internacionais, como vimos com a Vale em Tete, estamos a ver agora com a Mozal, Sasol, que são totalmente inúteis para aquilo que são os interesses dos moçambicanos e para a vida dos nacionais. O Estado moçambicano é violentado não só porque recebe, em termos de impostos, montantes totalmente ridículos para aquilo que são as capacidades de receitas destas empresas multinacionais, mas também pelo nível de violência que essas firmas causam no contexto nacional, falo em termos de destruição do meio ambiente, do modo de vida das populações, etc. Por isso precisamos de um Estado desenvolvimentista.

D&F: O que é, na essência, um estado desenvolvimentista e porque entende que é o que melhor se adapta ao nosso contexto?

RC: Julgo que um estado desenvolvimentista, tal como foi teorizado por Bagchi e Bresser-Pereira, é muito útil para Moçambique porque é o tipo de estado que participa no processo de excitação para o desenvolvimento por meio de políticas que visam o desenvolvimento colectivo. Temos o caso da China, Vietnam ou Rússia. Quando Vladimir Putin chegou ao poder, constatamos que as principais empresas nacionais de exploração de hidrocarbonetos passaram para a gestão do Estado russo e é a partir dessas empresas que o estado financia a protecção social, a política populacional, a saúde, a educação e, mormente, a questão da sua própria segurança. Como é que Moçambique, que é um País extraordinariamente pobre, sem recursos financeiros, com as populações a viverem na míngua, pode enveredar por um Estado mínimo, com um papel marginal na Economia, na posição de mero regulador sem nenhuma capacidade de poder ter recursos suficientes para poder intervir na vida das pessoas?

“É preciso excomungar os bandidos na Frelimo”

D&F: Há bocado perguntei se não tínhamos esperança. Essa questão deriva do facto de sabermos o que devemos fazer, como revelam alguns instrumentos, mas esbararmos num conjunto de interesses nefastos que não quererão ser mexidos e têm muito poder. Como é que se pode enfrentar estes grupos que são avessos ao desenvolvimento social?

RC: É profundamente importante ter alguma cautela epistémica antes de responder especificamente a esta pergunta. Não podemos colocar todos que estão no poder no mesmo saco. Dentro da Frelimo, por exemplo, há um grupo de moçambicanos que tem, de facto, a convicção profunda de que é preciso desenvolver o País a partir das nossas capacidades e das nossas próprias opções de desenvolvimento, e algumas dessas pessoas até beneficiaram dos processos das privatizações da neoliberalização. Há, portanto, um grupo consciente, e há um grupo que nem sempre faz parte do partido no poder, que é um conjunto de pessoas oportunistas.

D&F: São os tais infiltrados recorrentemente denunciados…

RC: São os infiltrados. A Frelimo não é o problema para Moçambique. Pelo contrário, a Frelimo foi sempre o parâmetro, foi sempre a bússola de orientação, mas a partir do momento que começou a ser infiltrada por bandidos, criminosos e antipatriotas, uma parte da máquina burocrática do começou a ser utilizada contra a própria Frelimo, contra a sua visão, e para responder ao interesse desse grupo que não está, de forma nenhuma, comprometida nem com a visão da Frelimo, nem com a visão de Moçambique, mas apenas com a visão de acumulação de dinheiro, que é o roubo do dinheiro dos moçambicanos para servir os seus próprios interesses. A solução para sair disto é fazermos aquilo que em Moçambique já se vem discutindo com o Jorge Rebelo, o Hélder Martins, o Marcelino dos Santos, o Sérgio Vieira, o Óscar Monteiro, Luís Cabaço, e outras pessoas comprometidas, que vêm chamando a atenção para a necessidade de recuperarmos a nossa dignidade em termos de definição de prioridades realmente moçambicanas. Isso passa, ostensivamente, pela capacidade de excomungar esses criminosos dentro do partido, para dar, digamos, azo a que se implementem as grandes opções de desenvolvimento de Moçambique. Isto pode não ser fácil, mas é necessário que quem vier a ser governante de Moçambique tenha, de facto, a coragem suficiente para poder tomar medidas drásticas para eliminar ou afastar todo e qualquer inimigo do desenvolvimento nacional.

D&F: Se assumirmos que estes grupos que capturaram o partido Frelimo e o Estado são poderosos e tornaram-se relevantes no cenário económico nacional, como é que poderemos expurgá-los sem prejudicar o andamento da economia, sem causar falência de empresas, e, consequentemente, o desemprego?

RC: Quando se fala de desenvolvimento está-se a falar de um processo contraditório, às vezes está carregado de violência, porque na situação em que nós nos encontramos hoje como Moçambique, qualquer que seja a medida drástica cujo objectivo é colocar Moçambique na rota de desenvolvimento seria justificada e os moçambicanos compreenderiam. Moçambique podia entrar em crise, de facto, por algum tempo, mas o problema é que mesmo com estes indivíduos, hoje Moçambique não está em condições favoráveis. O desemprego é massivo, o subdesenvolvimento é crónico a ausência de esperança no seio dos moçambicanos é profunda, porque na verdade estes grupos minoritários que não estão comprometidos com os interesses nacionais também não estão comprometidos com a boa imagem do partido Frelimo e do Estado moçambicano. Então, a utilidade desses indivíduos é mínima. Era necessário aceitarmos os sacrifícios ao desenvolvimento, que passava por eliminar, expurgar esses indivíduos, mesmo se fosse necessário agir como fizemos em 1975, em que tivemos que expurgar todos aqueles indivíduos que não estavam comprometidos com o processo de independência nacional – os xiconhocas. D&F: Num quadro em que se vai consolidando a nova ordem multipolar, com o surgimento de novas estruturas políticas e económicas, o que justifica que Moçambique permaneça amarrado às correntes do FMI e BM, quando há, por exemplo, alternativas ao nível do mundo árabe e não só?

RC: É preciso talvez felicitar Moçambique num aspecto: a política externa de Moçambique nunca foi de acorrentamento em relação a um bloco específico. Moçambique sempre teve a capacidade de definir a sua política externa multiplicando os parceiros de cooperação. Sempre manteve relações com a Rússia, manteve relações com China, tem relações muito fortes com a Índia, tem relações com os países do BRICS, tem relações com outros actores bilaterais e multilaterais cujo objectivo é evitar que Moçambique caia nas malhas da ditadura dessas organizações que querem, de facto, prejudicar a soberania nacional. Se constatar, Moçambique é um País que tem uma diferença em ralação a muitos outros países africanos que se encontram sob tutela directa dessas organizações multilaterais, basta ver um pouco alguns dos países da África do Oeste, que se encontram numa situação em que a sua soberania, até monetária, está capturada por actores exteriores a estes países – primeiro ponto fundamental. O segundo ponto é que o BM e o FMI, sendo verdade que têm uma relevância no contexto de Moçambique em termos de financiamento para alguns dos projectos fundamentais, sabemos que os projectos institucionais de Moçambique não são e não foram financiados necessariamente por essas duas instituições, o que significa que Moçambique deve ter dinheiro por exemplo da China, da Índia, e hoje tem cooperação com a Liga Árabe, países do Golfo Pérsico, para poder multiplicar os parceiros e evitar que seja tutelado por países exteriores. Agora, é preciso assumir que Moçambique é um País em situação de fragilidade, a sua capacidade de negociação não é a mesma que a da África do Sul, Tanzânia, Quénia, Marrocos, Argélia ou Egipto. Esses países têm a capacidade de recusar de forma fina, às vezes precisa e brutal, as imposições do Banco Mundial, do FMI ou ainda da OCDE. Então, nestas circunstâncias todas, estamos a dizer que Moçambique, apesar de ainda ser um País dependente do capital internacional ocidental, também não é um País que está completamente amarrado a estas instituições. É por essa razão que nós constatamos que quando o BM e FMI decidiram suspender financiamentos, é verdade que Moçambique passou por dificuldades, mas conseguiu manter-se relativamente vivo por causa das outras opções de financiamento.

D&F: Portanto, o caminho não deve ser a ruptura?

RC: Eu penso que o caminho que Moçambique tem que tomar é pelo menos o caminho que a Tunísia tomou recentemente contra o BM e o FMI, ao dizer que os condicionalismos que estavam a ser impostos eram contrários aos interesses nacionais e, por causa disso, caso não seja possível financiar tendo em conta a prerrogativa e as exigências da Tunísia, o consenso podia ficar bloqueado. Continua na próxima edição

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