EnglishPortuguese

Tensão Ruanda vs RSA coloca Moçambique entre a espada e a parede

 A guerra na República Democrática do Congo (RDC) atingiu o clímax com a tomada da cidade de Goma pelos rebeldes do M23, apoiados pelo Ruanda. A batalha que culminou com a captura da capital do Kivu Norte resultou em centenas de mortes, entre elas soldados sul-africanos que integram a Missão da SADC naquele país (SAMIDRC), o que reacendeu as tensões entre África do Sul e Ruanda e coloca Moçambique numa posição delicada, porquanto mantém importantes laços de cooperação com ambos os países.

Texto: Amad Canda

A captura de Goma pelo M23 e todos os episódios subsequentes colocaram Moçambique no centro do debate nas lides da geopolítica, e não é difícil entender a razão. Dilacerada pelo terrorismo desde 2017, a Pérola do Índico deve ao Ruanda – que tem cerca de cinco mil homens em Cabo Delgado – a fragilização dos jihadistas. Ao mesmo tempo, porém, é vizinho da África do Sul, com quem mantém laços históricos e cooperação no domínio económico – está entre os três maiores parceiros comerciais de Moçambique – e não só.

Ora, estas duas nações vivem em permanente tensão diplomática que, na semana finda, não só saiu do estado latente, como escalou para o patamar de troca de ameaças ao mais alto nível. Após a alegada morte de 13 soldados sul-africanos, Cyril Ramaphosa recorreu à rede social “X” para condenar o avanço do M23 e das Forças de Defesa do Ruanda, às quais chamou de milícias, e avisar que novos ataques à sua tropa seriam considerados “declaração de guerra”.

Na sua publicação, Ramaphosa garantiu ter partilhado este pensamento com o seu homólogo Paul Kagame, em conversa telefónica. Mas o presidente ruandês foi lesto a desmenti-lo, acusando-o de propalar “mentiras e distorções”. Mais do que isso, retribuiu a ameaça, ao afirmar que “se a África do Sul preferir o confronto, Ruanda irá lidar com o assunto nesse contexto a qualquer momento”.

Esta colisão entre dois países com os quais Moçambique tem interesses vitais coloca o Governo de Daniel Chapo num “grande dilema”, assume o analista angolano Bartolomeu Milton, recomendando “alguma prudência na abordagem das tensões”.

Na prática, Bartolomeu Milton sugere que Moçambique adopte posições equilibradas, sem ferir nem um, nem outro parceiro, mas reconhece não ser fácil, tendo em conta os seus deveres enquanto membro da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC).

“Por um lado, interessa a Moçambique estar próximo do Ruanda, mas, em função dos compromissos com a região, deve condenar o que o Ruanda está a fazer agora”, explica.

Como seria de esperar, individualmente, Moçambique não condenou o parceiro estratégico no combate ao terrorismo, tendo apenas declarado, pela voz de Daniel Chapo, que se junta aos esforços para o alcance da paz. No entanto, o ponto número 7 do comunicado da Cimeira Extraordinária da SADC, havida no último fim-de-semana no Zimbabwe, deixa claro que a SADC “condena veementemente os ataques contra as tropas da SAMIDRC pelo grupo armado M23 e pelas FDR”, uma posição que vincula Moçambique, que assinou a declaração final.

Entretanto, há quem entenda não haver dilema nenhum para Moçambique, apesar da troca de ameaças entre os seus amigos que são inimigos entre si. É o caso do jornalista angolano José Gama. Para este analista, Paul Kagame não cogita atacar o território sul-africano, mas apenas os soldados sul-africanos que integram a SAMIDRC, que, para o presidente ruandês, está ao serviço do regime congolês.

“Kagame entende que essa missão – a SAMIDRC – está ao lado do Congo. Neste caso, fala em atacar os sul-africanos presentes no Congo. Neste sentido, não afecta a relação com Moçambique”, esclarece, antes de recordar que os problemas entre Ruanda e África do Sul são antigos, estando na sua origem a execução, pelo regime de Kigali, de opositores políticos em território sul-africano.

Ademais, Gama entende que a SADC não tem por que se queixar da relação entre Maputo e Kigali, alegadamente porque o bloco regional “não soube ajudar devidamente Moçambique no combate ao terrorismo”. Refere que o apoio pela Missão da SADC em Moçambique (SAMIM) foi “exíguo e meramente protocolar”.

Kagame: um “pequeno Putin” em África

A dirigir um país com apenas 26 338 km², Paul Kagame tem um dos exércitos mais competentes de África, o que, associado aos seus alegados interesses expansionistas, lhe vale comparações com o presidente russo, que, em 2022, ordenou o início daquilo a que chama “Operação Militar Especial” na Ucrânia, e que já resultou na anexação de Donetsk, Lugansk, Zaporíjia e Kherson, na região de Donbass.

Para Bartolomeu Milton, não há dúvida de que “temos um pequeno Putin em África”, que age perante a “apatia da comunidade internacional, sobretudo do Ocidente”.

A referida apatia contrasta com o modus operandi ocidental, que actua com agressividade quando seus interesses são postos em causa. No caso em apreço, os Estados Unidos da América (EUA) têm um grande interesse no Corredor de Lobito, que ligará Angola, RDC e Zâmbia, devendo ser importante para a exportação de recursos para os EUA.

Perante este quadro, o comentador da Rádio Eclésia entende que a actuação branda dos EUA poderá ser explicada pelo facto de o país estar ainda num período de transição, com o presidente Donald Trump a redefinir a política externa. Ainda assim, vê sinais de que a estabilização da RDC é crucial para os EUA.

“O telefonema de Marco Rubio, secretário de Estado norte-americano, a Paul Kagame, na semana passada, é sinal de que os EUA têm intenção de ver a região estabilizar”, afirma, acrescentando que a estabilidade daquele país dos Grandes Lagos é do interesse de todo o continente africano.

“Kagame está a fazer tempo”

Na sua conversa com o presidente ruandês, Marco Rubio pediu cessar-fogo imediato na RDC, o que esbarra no desejo, já verbalizado pelo líder do M23, Corneille Nangaa, de avançar até à capital Kinshasa. Por outro lado, o esforço de mediação liderado por Angola está a colapsar, perante a desconfiança ruandesa de que João Lourenço, agora também líder da União Africana, não é imparcial. Aliás, terá sido para evitar reforçar esta interpretação que JLo abdicou de participar da Cimeira Extraordinária da SADC.

“Foi estratégico, pois sua presença na cimeira demonstraria apoio à condenação do Ruanda. Foi bom não ter ido”, assina Bartolomeu Milton.

Contudo, a suspeita de falta de neutralidade não é o único factor que afasta Kagame da mesa das negociações. Na verdade, na interpretação de José Gama, o líder ruandês não reconhece tarimba em João Lourenço que lhe permita liderar o processo negocial. Pelo contrário, vê nele uma figura que apenas quer projectar sua imagem.

Mais do que isso, acrescenta Gama, Kagame sabe que João Lourenço e Félix Tshisekedi, o presidente da RDC, em breve deixarão o poder. Por isso, estará a ganhar tempo para que uma nova administração assuma o comando na RDC e, com ela, possa eventualmente negociar a exploração dos recursos em Goma, sem os quais “Ruanda não sobrevive”.

O fundador do Club K encerra chamando a atenção para um facto curioso: o M23 não tem qualquer representação na mesa das negociações, apesar de Ruanda, oficialmente, não assumir a sua ligação ao grupo.

Gostou? Partihe!

Facebook
Twitter
Linkdin
Pinterest

Sobre nós

O Jornal Dossiers & Factos é um semanário que aborda, com rigor e responsabilidade, temáticas ligadas à Política, Economia, Sociedade, Desporto, Cultura, entre outras. Com 10 anos de existência, Dossiers & Factos conquistou o seu lugar no topo das melhores publicações do país, o que é atestado pela sua crescente legião de leitores.

Notícias Recentes

Edital

Siga-nos

Fale Connosco