Tem uma “admiração profunda” pelos jovens que, em 1964, decidiram pegar em armas para lutar contra o regime colonial português até lograr a independência proclamada em 1975. Admite que tal admiração pode levá-lo a não aceitar que hoje, volvidos 50 anos desde a independência, haja quem queira algo diferente, mas esforça-se por “legitimar” tal desejo, esperando apenas que a mudança, se algum dia vier, não seja a réplica dos erros cometidos neste meio século de liberdade. Elísio Macamo apresentou este raciocínio há dias, na “Oficina de Ideias” do Manifesto Cidadão, na qual partilhou o protagonismo com Francisca Noronha.
Texto: Amad Canda
Pode-se dizer que a honestidade intelectual é uma marca registada de Elísio Macamo, e a sua presença na Biblioteca da Universidade Pedagógica de Maputo, que acolheu a última sessão da “Oficina de Ideias”, visava discutir a “Responsabilidade dos Jovens em Tempos de Crise”. Os vestígios desta marca começaram a notarse logo no tempo dedicado às “primeiras impressões”, quando o sociólogo reconheceu não ser fácil, com a idade que tem, falar da actual geração.
É que Macamo é de uma outra geração, “que viveu a independência”, fruto de uma luta empreendida por jovens de então, por quem nutre uma profunda admiração. De resto, acredita que a moçambicanidade consiste em valorizar os que fizeram a luta pela autodeterminação e construíram o País, sem deixar de alertar para alguns perigos.
“Essa valorização pode levar-nos, nós os adultos, a achar que tudo quanto implique a saída deste partido que está no poder e a entrada de novos partidos seria um perigo, simplesmente porque, eu pelo menos, estou preso nesta memória [da luta pela independência] ”, assinala o professor catedrático, que trava “uma luta interior” no sentido de “dar legitimidade” ao desejo de mudança de que parece estar imbuída grande parte da juventude actual.
Posto isto, deixa registado o seu próprio desejo: “só espero que a mudança que vier, seja ela qual for, não seja a repetição dos erros vividos nos últimos 50 anos”.
“Racionalidade sem razoabilidade não é grande coisa”
Já na segunda etapa do programa, referente à palestra propriamente dita, o académico centrou-se no tema proposto pelos organizadores do evento – a “Responsabilidade da Juventude em Tempos de Crise” –, tendo enfatizado que a mesma se situa algures entre a racionalidade e a razoabilidade, o que, na sua perspectiva, passa pela capacidade de respeitar o outro. Observador atento das metamorfoses em curso na sociedade moçambicana, Macamo serviu-se do mais recente episódio de barbárie em Bobole, distrito de Marracuene, para esclarecer o seu raciocínio.
De acordo com o sociólogo, o agente policial que disparou contra uma viatura, matando uma criança, e a comunidade que se vingou linchando o agente em causa agiram no campo da racionalidade – o primeiro porque quis, alegadamente, impor o respeito pela Lei, e a segunda porque desejou fazer justiça. No entanto, segundo o académico, faltou aos dois lados o compromisso com a razoabilidade, que teria permitido calcular os danos que as suas acções causariam aos demais cidadãos.
É por estas e por outras que, na sua óptica, a “ética de convicção” deve ser contrabalançada com a “ética de responsabilidade”, pois esta permite identificar os “limites mútuos”, que compõem, juntamente com o escrutínio ao Governo e o dever de construir (e nunca destruir), a tríade das responsabilidades dos jovens.
“Somos uma geração sem desculpas”
Com estilo e forma diferentes, a necessidade de equilíbrio foi sublinhada por Francisca Noronha, defensora vigorosa de que a actual geração não tem desculpas. Não tem desculpas para deixar de exigir os seus direitos, mas também não as tem para não trabalhar e organizar-se para herdar a liderança do País.
“Somos imediatistas, achamos que de um dia para o outro podemos mudar o País”, anota a activista, alertando, no entanto, para o facto de “ainda não estarmos bem preparados” para herdar a liderança. Por isso mesmo, Francisca Noronha apela à “organização”, recordando que a responsabilidade deve ser acompanhada pela acção, e sem desculpas.
“A juventude já não acredita nos políticos”
Apesar de bastante elogiadas, as intervenções de Elísio Macamo e Francisca Noronha estiveram longe de serem favas contadas, no contexto em que cada palavra, cada letra, cada vírgula, são avaliadas com máximo rigor. Foi da boca de Boaventura Mucipo que surgiram as colocações mais “provocativas”, com o jornalista a colocar em causa a ideia de que a actual geração não tem desculpas.
“Esta geração não tem expectativas, não tem uma narrativa por seguir, não conhece uma filosofia de País, não sabe para onde é que vamos; então, quando se diz que esta geração não tem nenhuma desculpa para singrar, qual é esse contexto de ausência de desculpas?”, questiona o escriba, para quem o episódio de Bobole, em que, segundo Elísio Macamo, a reacção popular demonstrou alguma “desumanização”, é sintomático de problemas graves.
“Ao matar o polícia, a população não está apenas a tirar a vida de uma pessoa; está a dizer que o Estado não existe. Está a dizer que o Estado não está para resolver os seus problemas”, explicou, antes de esclarecer que as suas colocações não representam uma apologia à violência, mas uma tentativa de entender.
Entretanto, Mucipo não ficou sem resposta. Ao tomar novamente a palavra, o professor Elísio Macamo sublinhou que, ainda que se perceba a reacção das pessoas sob o ponto de vista racional, o ideal é evitar estar constantemente a racionalizar actos que desumanizam. Já Francisca Noronha reforçou a sua tese de falta de desculpas, sustentando-a na própria resiliência da juventude face às adversidades, mas também na capacidade organizacional.
“Quando vieram as eleições, em 2024, todos vimos o que os jovens querem. Os jovens sabem preparar-se, e o que falta são oportunidades. Essa pressão que está a haver para que o Estado se organize, para mim, é a prova de que temos uma juventude viva, que tem propósito”, rematou, marcando o fim de mais uma sessão da “Oficina de Ideias”, um dos instrumentos usado pelo Manifesto Cidadão para “fazer de Moçambique um lugar seguro para o exercício da cidadania, tendo como base o espírito republicano da Constituição”.




