Com a expansão acelerada dos megaprojectos em Moçambique, o debate em torno do conteúdo local tem ganho maior expressão nos últimos anos. A aprovação da Lei que regula o sector trouxe expectativas de que os recursos e investimentos associados a estas iniciativas pudessem finalmente traduzir-se em benefícios concretos para os moçambicanos. Contudo, para Cristiana Langa, directora-executiva da PACO, há ainda um longo caminho a percorrer para que esse ideal deixe de ser apenas um discurso e se materialize no quotidiano das comunidades.
Texto: Milton Zunguze
“Conteúdo local não é teoria, é prática, e a prática significa dinheiro no bolso dos moçambicanos”, afirmou a gestora, reconhecendo os avanços com a entrada em vigor da Lei, mas insistindo que a sua implementação deve ter efeitos palpáveis nas vidas das populações. Para Langa, de pouco serve um quadro legal robusto se este não se traduzir em empregos, formação e rendimento directo para as famílias.
Comunidades e mulheres afastadas do processo
Na avaliação feita pela PACO, apesar de a organização ter participado no processo de auscultação da Lei do Conteúdo Local e Procurement, ficaram evidentes falhas relevantes. “Apesar de não termos recebido convite formal, participámos na avaliação. Mas um dos pontos que observámos é que não vimos muita comunidade envolvida e, sobretudo, não vimos mulheres representadas nesse processo”, lamenta.
Cristiana Langa considera que este afastamento mina um dos principais objectivos da legislação, que é garantir inclusão e oportunidades para todos. No seu entender, a ausência de uma perspectiva de género é particularmente grave num contexto em que as mulheres desempenham um papel essencial na economia de base comunitária. Por isso, a responsável apela a uma revisão das estratégias, que inclua de forma clara mecanismos de empoderamento feminino e de desenvolvimento comunitário.
Falta de políticas práticas gera tensão social
Para a líder da PACO, os protestos que o País registou nos últimos meses não podem ser desligados da falta de uma política prática e eficaz de conteúdo local. “O que vimos nas manifestações está profundamente relacionado com isto: jovens sem emprego, empresas locais sem acesso aos grandes projectos e fornecedores nacionais sem espaço para fornecer bens e serviços. A raiz está aqui”, sublinha.
Langa explica que a missão da PACO vai além de apoiar empresas locais a formalizarem-se para entrarem no mercado dos megaprojectos. A instituição procura também garantir que o recrutamento local seja uma realidade, envolvendo directamente as comunidades, para que estas deixem de estar na periferia das grandes iniciativas económicas.
Women Local Procure: um caminho para o empoderamento
Este ano, a PACO lançou o projecto Women Local Procure, uma iniciativa desenhada para capacitar mulheres de comunidades locais, ajudando-as a formalizar os seus negócios e prepará-las para concorrer em projectos nacionais e internacionais. A ideia, explica Langa, é transformar mulheres empreendedoras, muitas ainda ligadas ao sector informal, em fornecedoras qualificadas e competitivas.
“O nosso objectivo é apoiar pequenas e novas empresas, apoiar mulheres em termos de capacitação, formalização dos seus negócios e assessoria. Queremos estar ao lado dos grandes projectos, perceber as dificuldades que enfrentam no mercado e, simultaneamente, dialogar com as comunidades para identificar aquilo que já conseguem oferecer”, descreve.
No âmbito deste projecto, a PACO organizou uma conferência sobre conteúdo local que reuniu grandes projectos, representantes do Governo, sociedade civil, pequenas e médias empresas e mulheres do sector formal e informal. O encontro permitiu expor desafios, trocar experiências e identificar soluções conjuntas.
Resistências e limitações
Apesar da pertinência da iniciativa, a PACO enfrenta limitações financeiras que dificultam a sua expansão. Mais ainda, a resistência das grandes empresas em apoiar projectos desta natureza tem sido um dos principais obstáculos. “A aceitação por parte das empresas é um ponto muito preocupante. Ainda não tivemos apoio significativo. Não sei se é apenas no mercado nacional ou se é uma tendência internacional, mas sentimos claramente esta barreira”, reconhece Langa.
Segundo a executiva, o objectivo da PACO é posicionar-se como elo de ligação entre comunidades e grandes projectos, criando parcerias estratégicas que permitam sair da teoria para a prática. “Não se trata apenas de dar formação. É preciso ir ao terreno, apoiar na formalização de negócios, recolher as preocupações das comunidades e leválas para a mesa dos grandes projectos”, acrescenta.
Exigência de maior transparência nos gastos dos megaprojectos
Para Cristiana Langa, a solução passa também pela adopção de planos mais claros e práticos de desenvolvimento de conteúdo local. Defende que os megaprojectos deveriam revelar, de forma regular, os seus gastos mensais e discriminar o que compram dentro e fora de Moçambique. Com base nesse levantamento, seria possível mapear oportunidades concretas de fornecimento local.
“Será que não temos empresas moçambicanas capazes de fornecer muitos destes produtos e serviços? Se não têm capacidade, não deveríamos ajudá-las a adquirir competências? Existem bens e serviços que os moçambicanos já podem entregar, mas, como não têm oportunidade, os projectos acabam a comprar fora. Isso precisa de mudar”, reforça.
A gestora dá exemplos práticos para sustentar a sua posição: “Por que motivo compramos batata na África do Sul? Será que não há produção suficiente em Moçambique? A PACO pode ir ao terreno, identificar uma associação de produtores, capacitá-los e colocá-los como fornecedores. É este know-how que queremos transmitir. Mas para isso precisamos de trabalhar em parceria com outras entidades e com o apoio dos grandes projectos.”
Um compromisso que resiste às dificuldades
Apesar das dificuldades, Cristiana Langa assegura que a PACO não desistirá de lutar pela transformação do discurso em acção. “O nosso foco não é apenas nas mulheres. Não queremos retirar espaço aos homens. O que queremos é empoderar a mulher, fazê-la sentir que pode falar, decidir e participar activamente”, sublinha.
A PACO, que está no mercado há pouco mais de um ano, procura afirmar-se como uma instituição de referência na ligação entre comunidades e megaprojectos. A organização aposta em pilares como o empoderamento local, o procurement estratégico e o desenvolvimento comunitário, apoiando pequenas e médias empresas em processos de capacitação e formalização.
Cristiana Langa realça que este caminho ainda está no início, mas acredita que, com maior envolvimento dos megaprojectos e um compromisso sério por parte das instituições, Moçambique poderá, finalmente, transformar o conteúdo local de um ideal em resultados concretos para a população.